Classificação dos fatos e atos jurídicos


1. INTRODUÇÃO

Os princípios são as forças basilares de uma ciência e guiam suas teorias e leis. Os princípios atuam como verdadeiras constituições de cada respectivo ramo de uma ciência: uma vez que suas teorias e leis ultrapassam suas fronteiras ou elas não valem ou provocam uma ruptura com o modelo que as cerca. Assim, a Teoria Geral do Direito Privado, presente na Parte Geral do Código Civil, traz acertadamente em seu Livro III a figura dos Fatos Jurídicos para moldar alguns dos princípios básicos do Direito Privado.

Logo no início do Livro III, ao tratar dos negócios jurídicos, o Código Civil estipula as condições de validade desse último, que segundo o art. 185 do mesmo diploma legal, se aplicam também aos atos jurídicos lícitos. Uma questão que surge então é: como diferenciar negócio jurídico do ato jurídico lícito? São institutos iguais ou diferentes?

O presente ensaio discorre sobre o tema abordando as principais vertentes dessa questão, bem como a classificação dos Fatos Jurídicos em sentido amplo e seus desdobramentos axiológicos.


2. FATOS JURÍDICOS

Muitas vezes nos deparamos com situações das mais diversas e não reparamos que o desenrolar de tais situações afetam o mundo jurídico. Ao achar uma pérola em alto mar e se apossar dela, o sujeito estará tomando para si a propriedade sobre uma res nullius. Alguém que joga no lixo de seu condomínio um pertence, estará realizando um ato de derelictio, abandonando uma coisa sua. Todos esses atos repercutem no mundo do Direito e todos os fatos com essa qualidade são chamados de fatos jurídicos. Exemplos análogos podem ser extraídos da obra de José Abreu Filho, O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral.

Destarte, encontramos vários conceitos de fatos jurídicos que ao se diferirem na forma, não o fazem tanto no aspecto semântico. Arnoldo Wald ensina que “os fatos jurídicos são aqueles que repercutem no direito, provocando a aquisição, a modificação ou a extinção de direitos subjetivos”. Conceito mais antigo, mas nem por isso menos importante, vem de Savigny que expressa que fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem e se extinguem (apud CARRIDE, 1997, p.3) .

De outro lado, alguns acontecimentos não repercutem no mundo jurídico e em nada afetam as relações jurídicas. A esses fatos dá-se se o nome de fatos materiais, simples ou neutros.

Dessa forma, o ponto crucial para a diferenciação de fatos jurídicos e fatos materiais é a presença ou não da repercussão jurídica. Como assinala José Abreu Filho, a natureza do fato, sua procedência, será irrelevante. Assim, para determinar se um fato é jurídico ou material, deve-se analisar as circunstâncias que o envolvem e não as que o geram. Exemplo clássico reproduz as conseqüências de um evento da natureza. Suponhamos que por força de uma forte tempestade, uma árvore caia e acerte em cheio um automóvel que estava próximo dela. Caso o proprietário do automotor tenha seu bem segurado, poderá cobrar da seguradora o valor estipulado em contrato, qualificando o acontecimento como um fato jurídico. Caso contrário - o automóvel não era segurado - o acontecimento não geraria efeito jurídico algum, se enquadrando como um fato material.


2.1 Classificação dos fatos jurídicos

A primeira classe dos fatos jurídicos representa os acontecimentos que independem da vontade. Nelas não há o elemento volitivo que caracteriza a conduta humana. São os fatos da natureza ou acontecimentos naturais.

Esses fatos da natureza também são divididos em ordinários e extraordinários. Os primeiros ocorrem com mais freqüência como o nascimento e a morte. Já os extraordinários ocorrem com menos freqüência como o caso fortuito e a força maior.

Exaurida a análise sobre os acontecimentos que independem da vontade, tem-se agora aqueles que se originam por uma manifestação volitiva da pessoa humana. Tal tema suscitou constantes debates ao longo do tempo.

A classificação feita pelo brilhante Professor Vicente Ráo nos apresenta três tipos de fatos jurídicos derivados da vontade humana. O primeiro compreende os fatos voluntários lícitos que por sua vez englobam asações materiais que recaem sobre coisas do mundo físico, ou afetam a situação material de quem as pratica' e as manifestações de vontade “consideradas como pressupostos dos efeitos assinados e ordenados rigidamente por lei” (1).

Os fatos voluntários ilícitos compreendem o segundo tipo de fatos oriundos da vontade humana, segundo o supracitado autor. Ao cometer um fato ilícito, que tem definição no presente Código Civil Brasileiro em seu artigo 186, é verdade que o agente não o faz com a vontade de desencadear as sanções e repressões que o acompanham. Ele o faz com o intuito de evitar algum prejuízo maior, pois para ele a sanção é mais conveniente do que o cumprimento da obrigação. Dessa forma, mesmo que o efeito causado não seja diretamente movido pela vontade do sujeito, a ilicitude de seu ato cria uma responsabilidade, oriunda de uma conduta negativa, a de não cumprir a obrigação.

Assim, os fatos lícitos e ilícitos são previamente prescritos em lei, sendo essa uma das características marcantes que os separam da próxima categoria de fato jurídico oriundo da vontade humana explicitado por Vicente Ráo: os atos jurídicos. Os atos jurídicos diferem dos outros fatos voluntários pela maior relevância da vontade. Assim, a vontade nos atos jurídicos visa alcançar, direta e imediatamente, os efeitos práticos protegidos pela norma e recebe desta o poder de auto-regulamentar os interesses próprios do agente(2).

Diferentemente de Vicente Ráo, os alemães adotaram outro modelo de classificação relativo aos fatos jurídicos voluntários. Oriunda dos Pandetistas alemães, essa outra forma de classificação assume que os fatos jurídicos voluntários são divididos em negócios jurídicos e atos não-negociais.

Os negócios jurídicos regulam interesses privados e emanam da autodeterminação das partes na relação jurídica. Destarte, os negócios jurídicos são a ponte entre a vontade humana e a concretização de efeitos pretendidos pela vontade reconhecidos pelo Direito. Semelhante posição adota José Abreu ao enunciar que o negócio jurídico ``seria resultante daquele elemento comum, ou seja, de uma atuação do homem, gerando aquela sincronização entre sua vontade e os efeitos por ele desejados'.

A outra categoria de fatos jurídicos voluntários enunciada pelos Pandetistas alemães corresponde aos atos não-negociais. Nos atos não-negociais os efeitos derivam do cumprimento da lei, não sendo diretamente oriundos da vontade. Vejamos o exemplo do eminente Professor José Abreu:

"...se alguém, por ato de última vontade, reconhece filho legítimo, registra-se uma ação do homem cujos efeitos são preordenados pela lei. A este ato segue-se a repercussão admitida no ordenamento. O filho terá direito a integrar a sucessão do pai, a usar de seu nome, enfim, a uma gama de direitos que resultam daquele ato volitivo do homem."

Assim os fatos jurídicos resultantes do reconhecimento do filho pelo pai são atos não-negociais pois são efeitos não resultantes da vontade e, sim, resultantes do ordenamento jurídico. Os atos não-negociais ainda se dividem em atos de mera atividade material e atos jurídicos strictu sensu ou atos semelhantes ao negócio jurídico. Essa última classificação não é objeto do presente ensaio.


2.3 A teoria unitária e a teoria dualista do negócio jurídico

Como exposto anteriormente, a classificação de Vicente Ráo não menciona a nomenclatura negócio jurídico. Para Vicente Ráo a noção de ato jurídico coincide, em substância, com a de negócio jurídico formulada pela doutrina alemã(3). O renomado autor é um dos expoentes da teoria unitária em nosso Direito como expõe em sua grande obra intitulada Ato Jurídico. Essa posição pode ser derivada da antiga nomenclatura do Código Civil de 1916, que utilizava o termo ato jurídico para conceituar tanto o ato jurídico quando o negócio jurídico, conforme informa a passagem abaixo:

“O negócio jurídico é, portanto, uma categora geral, a qual, como vimos, vem em nosso Código anterior definida como ato jurídico, no art. 81”(VENOSA, 2006).

A doutrina dos Pandetistas alemães, por outro lado, prega a teoria dualista, ao separar ato de negócio jurídico. Assim, o negócio jurídico tem caráter autônomo e espécie de qual ato jurídico é gênero.


2.4 O Direito brasileiro hoje

À primeira vista, o Código Civil vigente em território nacional, frente o embate entre a teoria unitária e a dualista, parece ter adotado a segunda posição, pelo menos no tocante à nomenclatura. O citado diploma legal preferiu adotar a nomenclatura negócio jurídico a ato jurídico.

Tratando-se da divisão dos fatos jurídicos decorrente da vontade humana, os atos jurídicos, o Código Civil os divide em três categorias: atos jurídicos lícitos, atos ilícitos e negócios jurídicos. Essas três categorias vêm dispostas no Livro III da Parte Geral do Código, sendo que os negócios jurídicos dão destrinchados no Título I, os Atos Jurídicos Lícitos no Título II, ainda que sob o manto de apenas um artigo, e o os Atos Ilícitos no Título III.

Quanto à doutrina, sob a análise de Washington de Barros Monteiro, o atual Código empresta ao negócio jurídico o mesmo tratamento legal que o de 1916 emprestava ao ato jurídico, ainda que não o defina.

Arnoldo Wald é mais explícito e à luz do atual Código explicita que ato jurídico é sinônimo de negócio jurídico. É o que se pode depreender em sua obra Direito Civil - Introdução e Parte Geral, que transcreve a seguinte passagem:

"Os fatos voluntários ou atos subdividem-se em atos materiais ou de mera conduta e atos ou negócios jurídicos (declarações de vontade) (WALD, 2003)"

Outro renomado autor, César Fiuza, adota postura diferente dos demais citados. Fiuza enuncia que negócio jurídico é espécie do gênero ato jurídico. Este último é dividido em atos jurídicos em sentido estrito, atos jurídicos ilícitos e negócio jurídico. Além disso, ressalta que o próprio Código Civil na maioria das vezes quando fala em ato jurídico se refere aos negócios jurídicos.

Ao encontro do exposto por César Fiuza, Sílvio Rodrigues também entende que ato jurídico engloba o conceito de negócio jurídico. Porém esse último classifica o negócio jurídico como uma espécie de ato jurídico lícito.

Seguindo a análise dos principais doutrinadores nacionais, Venosa retrocede ao Código de 1916 e aponta que esse Código antigo não atentou para as diferenças entre ato jurídico e negócio jurídico. Segundo ele, o velho Código apenas se limitou a definir o que entendia por ato jurídico, sem mencionar a expressão negócio jurídico. Dessa forma, Venosa também vê diferenças entre ato jurídico e negócio jurídico, pois o mesmo afirma que:

“Inobstante, porém, certa falta de técnica no tocante à estruturação dos negócios jurídicos em nosso Código anterior, corrigida no mais recente diploma, não há dificuldade para que a doutrina solidifique os conceitos dessa categoria geral, mas abstrata, que é o negócio jurídico”(VENOSA, 2006).

Ainda que de acordo com a solidificação do conceito de negócio jurídico, como preconiza Venosa, notamos ainda a falta de consenso no tocante à sua classificação dentre os atos voluntários.

Diante de tantas peculiaridades, parece-nos mais conveniente adotar a posição adotada pelos Pandetistas alemães e que vai ao encontro do entendimento de José Abreu Filho, César Fiuza, Sílvio Rodrigues e Venosa. Isso implica que para o presente trabalho, a teoria dualista do negócio jurídico é a mais conveniente. Adotamos essa posição por, de comum acordo com os pensadores acima relacionados, pensar que os negócios jurídicos, sendo atos negociáveis com maior relevância de vontade, têm natureza peculiar e se diferem dos demais atos jurídicos.
Restringindo agora os negócios jurídicos à sua classificação dentre os fatos jurídicos oriundos da vontade humana, entendemos ser a mais adequada a posição adotada por César Fiuza. A divisão desses fatos em atos jurídicos em sentido estrito, atos jurídicos ilícitos e negócios jurídicos, parece-nos a melhor forma de classificar os conceitos presentes nas figuras discorridas no presente ensaio. Vale ressaltar aqui que os fatos jurídicos em sentido estrito, são aqueles que emanam da vontade da lei e podem ser perfeitamente enquadrados na nomenclatura atos jurídicos lícitos conforme preconiza o atual Código Civil.


3. CONCLUSÃO

Diante do exposto nesse ensaio, podemos notar a amplitude desse ramo da Teoria Geral do Direito Privado, o ramo dos Fatos Jurídicos. Desde a definição dos Fatos Jurídicos até a sua classificação, nota-se uma sistematização oriunda de evoluções doutrinárias. A sistematização dessa área do Direito Privado é de suma importância, pois molda seus princípios e regula as relações privadas.

Regulamentar os acordos de vontade estipulando seus princípios é uma das funções precípuas do Direito Privado. Afinal, o que seria de nossa sociedade se os acordos não tivessem nenhuma garantia legal de serem cumpridos?

Vale ressaltar que a regulamentação dos acordos não constitui um cerceamento da liberdade contratual e sim medidas para garantir a ordem pública. A liberdade contratual sob a forma da vontade humana é de grande relevo para essa área do Direito. O surgimento do conceito de negócio jurídico é um exemplo dessa importância.

O negócio jurídico, sistematizado pelos alemães, fez com que divergências doutrinárias aparecessem, pois o Código de 1916 não os abordava. A solução então encontrada por Vicente Ráo foi equiparar os negócios jurídicos aos atos jurídicos. Isso não cessou as divergências. Com o intuito de encerrar a discussão, o novo Código Civil passou a adotar a nomenclatura negócio jurídico. Assim, atualmente a doutrina tem dado preferência à teoria dualista.

Quanto à classificação dos atos voluntários, ainda que os doutrinadores atuais não se atentem muito para essa questão, ficou claro pelos fatos aqui mencionados que mesmo com o novo Código Civil essa questão não encontrou um senso comum.





NOLETO, Rafael Vasconcelos. Classificação dos fatos e atos jurídicos. Boletim Jurídico. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1540 . Acessado 27 nov. 2009.

O ato ilícito no Código Civil


1. Exórdio

Segundo vem sendo dito, é possível se constatar com certa facilidade o fato de alguns muitos misturarem conceitos pertinentes ao instituto da responsabilidade civil, o fato da jurisprudência, no mais das vezes, considerar falta de nexo causal em lugar da ausência de culpa, e o fato do fortuito, da força maior e da falta exclusiva da vítima, tecnicamente excludentes da culpa, serem confundidas por não poucos com a ausência de nexo causal.

Se por um lado a doutrina ressalta que o ponto de maior controvérsia no plano da responsabilidade civil consiste no modo de entender os seus fundamentos, por outro, algumas dentre as mais conhecidas e versadas figuras do Direito vêm confirmando a balbúrdia que se constata instalada no seio daquele instituto.

Observa Clovis Belivaqua, por exemplo, que a teoria dos atos ilícitos reduzida aos seus próprios elementos é clara e simples e tem recebido das noções de culpa e responsabilidade com as quais tem íntima ligação, obscuridades, filhas das sutilezas em que têm sido férteis os escritores.

Em quadra própria, Antonio Lindenbergh C. Monteiro expõe que a teoria da indenização de danos só começou a ter uma colocação em bases racionais quando os juristas constataram, após quase um século de estéreis discussões em torno da culpa, que o verdadeiro fundamento da responsabilidade civil devia ser buscado na quebra do equilíbrio jurídico-econômico provocada pelo dano.

Aguiar Dias, principal referencial doutrinário sobre responsabilidade civil no país, de sua feita, pondera que Von Iehring, defendendo não haver reparação sem culpa, satisfez por dilatados anos a consciência jurídica.

É também, registre-se, o respeitado jurista Orlando Gomes quem assevera ser dado aos escritores se embaraçarem na explicação da chamada responsabilidade extracontratual.

Assim, por tudo, não é sem razão que De Page, citado por Caio Mário, afirma que na senda da responsabilidade civil, tanto sob o aspecto legislativo quanto doutrinário, como, ainda, jurisprudencial, o que se vê margeia a anarquia.

O disciplinamento do ato ilícito pela recém-inugurada codificação civil brasileira de 2002, ao que tudo indica, não bastou para afastar a confusão de idéias que ainda gravita em torno desse instituto.

É justamente sobre esse desencontro de formulações pertinentes ao ato ilícito que se desenvolve o presente e despretensioso estudo que ora se enceta.


2. Síntese da evolução histórica da responsabilidade civil

A primeira norma escrita disciplinando a aplicação de penalidades àqueles que causassem danos a terceiros foi o Código de Hamurabi, do Rei Hamurabi (1792-1750 ou 1730-1685 a.C.), criador do império babilônico. Dizia tal diploma de lei em um de seus tantos artigos:

“196º - Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe deverá arrancar o olho”.

Eis a pena de talião, calcada na idéia da reparação do mal com mal igual, sob o lastro de que qualquer dano causado a outrem deve ser considerado contrário ao direito.

No começo os romanos não distinguiram a responsabilidade civil da responsabilidade penal, impondo de igual modo uma pena ao causador do dano.

Maior evolução do instituto ocorreu num segundo momento, a posteriori, com a Lex Aquilia, que deu origem à denominação da responsabilidade civil delitual ou extracontratual, quer seja, a chamada responsabilidade civil aquiliana.

Nas palavras de Ulpiano, sob a lei Aquília a mais leve culpa deve ser considerada – “in lege Aquilia et levissima culpa venit.”

A concepção de pena foi, então, aos poucos, sendo substituída pela Idéia de reparação do dano sofrido, que ao final acabou incorporada ao Código Civil de Napoleão, o qual, inclusive, exerceu grande influência sobre certos institutos do Código Bevilaqua de 1916.


3. O fundamento da reparação civil

Se desde a análise lingüística da responsabilidade já se vê a promoção da sanção fundamentada com maior propriedade, a reparação de todo dano injusto vem a ser uma exigência da consciência jurídica universal.

Clovis Belivaqua justificava a reparação argumentando que o Direito Civil não visa o agente simplesmente, mas principalmente a vítima, vindo em seu socorro com o fito de restaurar, tanto quanto possível, o seu direito violado, conseguindo assim o que, em suas próprias palavras, se poderia chamar de eurritmia social refletida no equilíbrio dos patrimônios e das relações pessoais que se formam no círculo do direito privado.

No dizer de Silvio Rodrigues, o princípio geral de direito, informador de toda a teoria da responsabilidade, encontradiça no ordenamento jurídico de todos os povos civilizados e sem o qual a vida social é inconcebível, é aquele que impõe, a quem causa dano a outrem, o dever de repará-lo”.

Embora possa haver dano sem responsabilidade, como v.g. se dá na concorrência comercial leal que se instala entre dois comércios do mesmo ramo, o certo é que, como resta pacificado, sem dano não há responsabilidade. Alvino Lima, aliás, confirma com propriedade que a inexistência de dano é óbice à pretensão de uma reparação, porque sem objeto.

E a idéia de reparação, diga-se, é inclusive mais ampla do que a do ato ilícito, pois, se este cria o dever de indenizar, há casos de ressarcimento de prejuízo em que não se cogita da ilicitude da ação do agente.


4. Antijuricidade no cível

O Direito surge no seio social em razão da incessante busca pela instauração e preservação da ordem, principio fundamental da natureza e idéia primária do homem, sem a qual a vida na pólis se inviabiliza.

Assim, regra fundamental à vida grupal é aquela que vem informada no dístico romano neminem laedere.

Segundo Orlando Gomes, o ato haverá de ser considerado antijurídico sempre que como decorrência de uma infração da regra que disciplina a atuação estritamente jurídica de alguém, se manifeste uma desconformidade, ainda que não venha esta lesar direito subjetivo de quem quer que seja. E cita com proficiência o exemplo daquele que, pretendendo transmitir mortis causa seus bens a determinadas pessoas, deixa de observar a forma autorizada na lei, descumprindo assim as solenidades ordenadas, e, promovendo, pois, ato desconforme à regra de Direito.

Situação diferente, no entanto, diz mais aquele versado jurisconsulto, apresenta-se quando do ato infringente de norma jurídica resulta dano à outra pessoa. A violação implica, nesse caso, lesão a um direito subjetivo, provocando reação diferente da ordem jurídica.

Portanto, pode ocorrer de um ato ser rotulado de antijurídico sem que, por conta dele, ao agente se imponha necessariamente o dever de indenizar. Atribuir-se-á, porém, esse dever ao autor da ação se do ato decorrer dano à esfera jurídica de outrem.

Ambas as situações antes mencionadas reproduzem espécies de antijuricidade subjetiva. Mas a antijuricidade não se limita, porém, diga-se, a essas duas espécies subjetivas. A ordem jurídica, por exigência que decorre, sobretudo, de reclamo moral recomendando a reparação de todo e qualquer dano, admite ainda a antijuricidade objetiva, aquela para qual o proceder se faz irrelevante.


5. Responsabilidade civil

Nas palavras de Pontes de Miranda, quando se faz o que não se tem o direito de fazer, certo é que se comete ato lesivo, pois que resta diminuído, contra a vontade de alguém, o ativo dos seus direitos, ou se lhe eleva o passivo das obrigações, o que é genericamente o mesmo.

Maria Helena Diniz, sintetizando a conceituação de responsabilidade civil aduz que se pode defini-la como a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).

Aquele que destrói uma res nullius não chega a provocar um prejuízo juridicamente relevante por conta exatamente de inexistir a vítima do dano provocado, o que permite dizer em via versa que o fundamento da responsabilidade baseia-se no desequilíbrio jurídico-econômico promovido pelo prejuízo.

Não se pode negar que no campo da responsabilidade civil o Código Francês de 1804 foi suporte e modelo para muitos dos institutos do nosso estatuto civil ab-rogado. A culpa como pressuposto da responsabilidade, acolhida no art. 159 do Código Civil de 1916, por exemplo, teve por inspiração o art. 1383 do estatuto francês.


6. Ato ilícito

O conceito de ato ilícito é de suma importância para a responsabilidade civil, vez que este faz nascer a obrigação de reparar o dano. O ilícito repercute na esfera do Direito produzindo efeitos jurídicos não pretendidos pelo agente, mas impostos pelo ordenamento. Em vez de direitos, criam deveres. A primeira das conseqüências que decorrem do ato ilícito é o dever de reparar. Mas não se faz única, eis que, dentre outras, este pode dar causa para a invalidade ou cessação do ato, por exemplo.

No campo do direito, o ilícito alça-se à altura de categoria jurídica e, como entidade categorial, é revestida de unidade ôntica, diversificada em penal, civil, administrativa, apenas para efeitos de integração, neste ou naquele ramo, evidenciando-se a diferença quantitativa ou de grau, não a diferença qualitativa ou de substância, pondera o provecto José Cretella Jr.

E o princípio que obriga o autor do ato ilícito a se responsabilizar pelo prejuízo que causou, indenizando-o, é de ordem pública, ressalta a renomada Maria Helena Diniz.

A definição de ato ilícito afirmada pela plêiade de renomados doutrinadores a seguir mencionados, salienta diferença apenas no estilo pessoal de cada deles expor. Vejam-se.

“Ato ilícito é, portanto, o que praticado sem direito, causa dano a outrem.”(Clovis Belivaqua)

“Que é ato ilícito? Em sentido restrito, ato ilícito é todo fato que, não sendo fundado em Direito, cause dano a outrem.”(Carvalho de Mendonça)

“Ato ilícito, é, assim, a ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente, um preceito jurídico do direito privado, causando-se dano a outrem.”(Orlando Gomes)

“ ... ato ilícito é o procedimento, comissivo (ação) ou omissivo (omissão, ou abstenção), desconforme à ordem jurídica, que causa lesão a outrem, de cunho moral ou patrimonial.”(Carlos Alerto Bittar)

“O caráter antijurídico da conduta e o seu resultado danoso constituem o perfil do ato ilícito.”(Caio Mario da Silva Pereira)

“O ato ilícito é o praticado culposamente em desacordo com a norma jurídica, destinada a proteger interesses alheios; é o que viola dieito subjetivo individual, causando prejuízo a outrem, criando o dever de reparar tal lesão.”(Maria Helena Diniz)

“Ato ilícito. Ação ou omissão contrária à lei, da qual resulta danos a outrem.”(Marcus Cláudio Acquaviva)

Na trilha traçada pelos aludidos letrados, dir-se-ia, pois, que somente por razão a uma pretendida menção genérica é que admite-se considerar o ilícito como desconformidade pura e simples, isto é, que se o possa ter tão só como ato contrário à lei. Não fosse assim, por certo que de toda e qualquer infração exsurgiria o dever de reparar, o que de fato não acontece. Por conta disso, costuma-se enunciar que o ato ilícito constitui uma ação comissiva ou omissiva, imputável ao agente, danosa ao lesado e contrária à ordem jurídica.

Aliás, na caracterização do ato ilícito, o direito violado, diga-se, deve ser, por força mesmo da sistemática orgânica do instituto da responsabilidade civil, direito absoluto, isto é, aquele imposto erga omnes, vez que o direito relativo ou contratual, por interessar exclusivamente às partes, não é tido senão como ato ilícito lato sensu.

A culpa, apregoe-se, é o elemento anímico do ato ilícito. E este, reitera-se, para efeitos de responsabilidade civil, se refere à ação ou omissão que, contrariando o ordenamento jurídico, vem causar algum tipo de dano a terceiro.


7. O ato ilícito no antigo e no novo Código Civil

Estabelece o art. 159 do Código Belivaqua, ora ab-rogado, conforme segue, verbis :

“Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.”

Sobre a violação de direito doutrina o aplaudido Alvino Lima, verbis:

“Viola-se o direito de outrem todas as vezes que se fere a sua pessoa ou o seu patrimônio.”

Ora, considerando, como bem leciona aquele insigne autor, que violar direito abrange tanto a esfera pessoal quanto a patrimonial e, considerando ainda que a lei não contém palavras inúteis, porque, então, pergunta-se, o prefalado regramento não empregou tão só a expressão “violar direito”, ao invés desta vir complementada por aquela outra, quer seja, “ou causar prejuízo”?

A resposta está em que o art. 159 do Código Civil de 1916 estabelece que o agente fica obrigado a reparar dano imaterial por violar direito, ou, dano material por causar prejuízo, ou a ambos reparar, quando for o caso.

Partilha desse entendimento, se nos parece, o douto Carlos Roberto Gonçalves, com o que expressa, verbis :

“A violação de um direito, como vimos, mesmo sem alegação de prejuízo ou comprovação de um dano material emergente, pode, em certos casos, impor ao transgressor a obrigação de indenizar, a título de pena privada (art. 927 do CC: hipótese de pena convencional; nos caso de violação dos chamados direitos da personalidade, como a vida a saúde, a honra, a liberdade etc.).”

Assim, confirma-se, ao estatuir o art. 159 do Código de 1916 que “violar direito, ou causar prejuízo a outrem, obriga o agente a reparar o dano”, o que na verdade faz aquele dispositivo é determinar que, ante a ocorrência de dano imaterial (violar direito), ante a ocorrência de dano material (causar prejuízo), ou ante a ocorrência de ambos (violar direito e também causar prejuízos), o agente se obriga a reparar aquele, este, ou, eventualmente, todas as espécie de danos que ele tiver dado causa.

Em relação ao art. 186 do Código Reale, ora em vigor, diz este, verbis:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

O texto de lei à mostra, visa, como dele se pode inferir, coisa diferente daquele seu correspondente no Código Bevilaqua, quer seja o art. 159. A regra ora sob comento dita o que deve ser tido como ato ilícito, e deixa de declarar o efeito que dele decorre, eis que proclamado este no art. 927.

A expressão “violar direito” no texto do art. 186 do novo Código revela a antijuricidade do ato. No art. 159 do Código ab-rogado, esta mesma expressão, diversamente, diz respeito ao dano imaterial nele previsto.

Mas não é só isso.

O Projeto de Lei n° 7.312 de 2002 propõe alterar o art. 186 da novel codificação civil, dando-lhe a seguinte redação :

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Nas palavras do proponente, é a seguinte a justificativa da alteração pretendida, verbis:

“A ilicitude do ato jurídico não pode estar vinculada a imputação de dano a outrem; basta a conduta antijurídica que o ato não encontrará respaldo no sistema para sua preservação ou, ainda, gerará o direito da parte prejudicada de provocar a tutela jurisdicional para impedir a continuidade de produção de efeitos pelo ato ilícito e, conforme o caso,pedir a reparação dos danos causados.”

A proposta de alteração, contudo, contém expressivo equívoco. Talvez mesmo por conta da confusão que, apontada como visto por muitos eminente juristas, reina no campo da responsabilidade civil.

Como demonstrado ao longo da exposição, o ilícito será sempre antijurídico, mas a recíproca não necessariamente se faz verdadeira. E, se é certo que a conduta antijurídica não deve encontrar respaldo no sistema como bem vem ressaltado naquela justificativa, certo também poder afirmar-se que uma vez ausente o dano, impróprio se pretender que a antijuricidade se externe como ato ilícito que não é.

Ainda sobre a alteração da redação do art. 186 do novel diploma cível, verifica-se mais que o proponente argumenta que à parte prejudicada deve ser assegurado o direito de provocar a tutela jurisdicional para impedir a continuidade de produção de efeitos (danos) pelo ato ilícito(violar direito e provocar dano). Ora, esse direito já vem assegurado de forma implícita na atual redação do art. 186 e na sistemática do Código. Em assim sendo, também sob este aspecto carece de propósito a alteração pretendida.

A redação do art. 942 do novo Código é, recorda-se, a seguinte, verbis:

“Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado. Se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.”

Observa-se que o artigo sob comento decreta o efeito (reparação) sobre os bens do responsável por decorrer este quer da ofensa (dano material) quer da violação do direito (dano imaterial) por ele promovido. Nesse caso, por se tratar tão só do efeito do ato ilícito, e não do conceito deste, válida-se o emprego da disjuntiva “ou” presente entre os termos “ofensa” e “violação de direito”, à semelhança do que acontecia no art. 159 do Código anterior.

Em outra aresta, relativo ao abuso de direito como ato ilícito, estatui o art. 187 do Código novo, verbis:

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Há de se notar que a antijuricidade anunciada na regra em destaque é objetiva. Nesse sentido veja-se o entendimento dado pelo enunciado n° 37 da I jornada de Direito Civil da Justiça Federal -http://www.justicafederal.gov.br - sobre o texto do artigo sob comento, verbis:

“A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”

Portanto, a expressão ato ilícito presente no texto do art. 187 da nova codificação vem ali empregada no sentido lato senso do seu significado.

Ante tudo, pois, não se pode aceitar nem tampouco se emprestar apoio à proposta de alteração contida no prefalado Projeto de Lei.

E mais ainda.

O texto do art. 927 do novo diploma civil, este sim, ressentindo-se da melhor técnica, merece remendo. Diz aquela regra de lei, in verbis:

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

Observa-se no dispositivo gritante redundância, como quedará explicado com o que segue.

A expressão “causar dano a outrem” já se encontra presente, ínsita mesmo, no conceito de ato ilícito enunciado pelo atual art. 186 - “ação ou omissão voluntária, decorrente de negligência ou imprudência, que viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.” Aí repousa a tautologia apontada.

Melhor, então, seria dizer : Art. 927. Aquele que praticar ato ilícito (arts. 186 e 187), fica obrigado a reparar o dano dele decorrente.


8. Conclusão

Por conta da falta de um maior entendimento dos fundamentos da responsabilidade civil, se depara ainda com uma certa dose de confusão reinante na senda daquele instituto, acalnçando o ato ilícito icnlusive. É certo, pois, que sobre todo o Direito haverá de recair reflexos decorrentes desse fato, eis que a responsabilidade civil se faz unidade ôntica da ordem jurídica.

Mesmo nos primórdios da evolução social a consciência humana já vinha a reprovavar a violação da paz social a que o dano vem dar azo.

Se antes aplicava-se a pena de talião, com o tempo esta se transmudou em sanção a gravar tão só o patrimônio do agressor.

Princípio geral de direito aplicável em qualquer latitude impõe a quem causa dano a outrem o dever de repará-lo, sob pena de inviabilizar o convívio social.

Ato antijurídico é todo aquele contrário ao Direito. Ato ilícito, porém, é somente aquele que viola direito e causa dano a outrem, fazendo exsurgir por conta disso a obrigação de reparar, quer retornando a vítima ao statu quo ante quer compensando-a da dor física ou moral.

O art. 159 do Código de 1916, seguindo a linha de estruturação elegida, quer seja, aquela que se fazia própria ao projeto, não conceitua o ato ilícito. Aponta, isto sim, os elementos conttitutivos deste e o efeito que dele decorre. É preciso que fique bem claro que o referido Código, monumento jurídico legado por Clovis Belivaqua e colaboradores ao Brasil e ao mundo, considerou bastante e suficienteper se que assim fosse. Não se queira com isso dizer que os feitores daquela brava codificação pretérita incorreram em atecnia ou coisa que o valha. Não. Cada qual obra solução da maneira que esta a si se lhe apresenta como sendo aquela que melhor atende ao escopo do esboço delineado e pretendido.

A expressão “violar direito” integrante do texto do dispositivo 159 do Código ab-rogado, ali se vê empregada fazendo referência ao dano imaterial. Senão, desnecessário aquela outra, querefere-se, por certo, ao dano material - “causar prejuizo”.

O art. 186 do novel Código em vigor, conceitua em essência o ato ilícito. Tanto é assim que ficou a cargo do artigo art. 927 decretar o efeito que deste decorre. E a expressão “violar direito” integrante desse referido texto de lei quer tão só exaltar a antijuricidade do ato promovido por aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. Reside nesse dispositivo a cláusula geral da ilicitude subjetiva.

A proposta de alteração do art. 186 contida no Projeto de Lei n° 7.312 de 2002 não merece prosperar, eis que, salvo melhor juízo, se esborralha por carecer de juricidade.

Por conta da gritante redundância presente no atual art. 927 da recente codificação civil, reclama aquele texto de lei reparo. Quiçá deva este enunciar algo como: “aquele que praticar ato ilícito (arts. 186 e 187), fica obrigado a reparar o dano dele decorrente.” À registro a sugestão ora legada.

Quid jus?





SANTOS, Herez. O ato ilícito no Código Civil. Boletim Jurídico. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1373 . Acesso em: 27 nov. 2009

O senso de justiça e a sujeição à lei na teoria de John Rawls


A obra de John Rawls tem sido objeto de inúmeras pesquisas no meio acadêmico-filosófico. Esta pesquisa é uma introdução ao estudo do senso de justiça e da sujeição do indivíduo à lei. Para tanto, são analisados os seguintes tópicos na obra de Rawls: a constituição da personalidade moral dos sujeitos rawlsianos no que concerne ao aprendizado da justiça, a relevância das práticas institucionais em uma sociedade bem-ordenada para a formação do senso de justiça, as noções de estado de direito e a sua respectiva subordinação à justiça como regularidade e legitimidade legal, desde o âmbito doméstico, isto é, interno a uma democracia constitucional até outras formas societárias admitidas por Rawls, expressas em, O Direito dos Povos. A temática da sujeição dos indivíduos às leis, a partir do senso de justiça dos cidadãos, neste âmbito, não é problematizada claramente pelo autor. Apesar disso, é possível entrever considerações, que apesar de lacônicas, no conjunto da obra, são bastante relevantes e interessantes. Para o filósofo, as leis são diretrizes direcionadas às pessoas racionais cujo objetivo é viver num sistema de cooperação social, do qual a base, como sistema social, é transmitida à geração posterior. Não obstante as leis serem diretrizes endereçadas às pessoas racionais, ocorre que nem sempre essas leis são expressões institucionalizadas da justiça. Apesar disso, em razão do dever natural de justiça, as pessoas participantes de uma sociedade bem-ordenada devem respeitar e seguir esta norma. Caso a injustiça dessa norma comprometa o sistema de cooperação social, dentro da estrutura básica da sociedade bem-ordenada, e satisfazendo alguns critérios nomeados por Rawls, este admite a possibilidade da desobediência civil, questão investigada nesta pesquisa. A desobediência civil é vista pelo filósofo como uma forma de protesto, legalmente factível, dentro dos limites da lei, em favor do benefício da sociedade e como forma de promover a justiça mediante a correção desta norma. A desobediência civil é, assim, um recurso de protesto público dentro dos limites da lei.


INTRODUÇÃO

"A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento." [01]

Rawls é um pensador que politicamente defende o contratualismo, nos passos de Locke, Rousseau e Kant. Seguindo o contratualismo, expresso inicialmente em sua obra magistral, Uma Teoria da Justiça, de 1971, o autor vê na posição original, que é um dispositivo puramente hipotético e ahistórico, a origem da sociedade política. Na posição original, as pessoas, que são representativas, estariam sob o Véu da Ignorância, conceituado pelo pensador como total privação do conhecimento da posição que se ocupa na sociedade e das partes que representam. Assim condicionados, os sujeito representativos deliberariam sobre os princípios da justiça, os quais são frutos do consenso.

A discussão, dentro da qual a lei encontra-se na obra rawlsiana, vincula-se à concepção do estado de direito e sua função protetiva dos direitos individuais relacionados com os princípios de justiça especialmente com a liberdade [02], e, por outro lado, à questão do dever e da obrigação naturais dos indivíduos, no contexto do estado democrático-constitucional.

No entender de Rawls, o estado de direito está intimamente relacionado com a liberdade. Tal relação ganha relevo quando considera-se a noção de sistema jurídico e de sua íntima conexão com os preceitos que definem a justiça como regularidade. Um sistema jurídico é uma ordem coercitiva de normas públicas destinadas a pessoas racionais, com o propósito de regular sua conduta e prover a estrutura da cooperação social. Quando essas regras são justas, elas estabelecem uma base para expectativas legítimas, as quais possibilitam que as pessoas confiem umas nas outras e reclamem quando não vêem suas expectativas satisfeitas, de modo que, se a base dessas reivindicações forem incertas, os limites da liberdade também o serão. Para que as obrigações decorrentes constituam a base das expectativas legítimas, pressupondo que essas sejam regras eqüitativas ou justas, basta que um grupo de indivíduos se filie a essas instituições e aceite os benefícios daí resultantes. Os organismos constitucionais definidos por esse sistema têm, em geral, o monopólio do direto legal de exercer pelo menos as formas extremas de coação. Essas características simplesmente refletem o fato de que a lei define a estrutura básica no âmbito da qual se dá o exercício de todas as outras atividades[03].

Decorre assim, que o estado de direito é o resultado da aplicação ao sistema jurídico da concepção formal da justiça [04], e neste sentido, tal qual é pensado por Rawls, tem envolvimento com os seguintes princípios preceituais: princípio preceitual do dever implica poder [05], que, na teoria da justiça, identifica várias características do estado de direito, a saber: 1) as ações exigidas ou proibidas pelo estado de direito devem ser do tipo que seria razoável que as pessoas possam fazer ou evitar. Um sistema de regras dirigido para as pessoas racionais para organizar sua conduta se preocupa com o que elas podem, ou não, fazer; 2) a idéia de que o dever implica poder transmite a noção de que aqueles que estabelecem as leis e dão ordens fazem-no de boa fé; 3) a exigência de que um sistema jurídico reconheça a impossibilidade do cumprimento da lei como argumento de defesa; 4) exigência de que casos semelhantes devem receber tratamento semelhante; 5) a pressuposição de que não há ofensa sem lei; e, 6) reconhecimento dos princípios da justiça natural, os quais definem a noção de justiça natural que deve assegurar que a ordem jurídica seja imparcial e regularmente mantida [06].

No que concerne à especulação levada à efeito acerca da lei, elaborada perifericamente, esta é interpretada pelo autor como diretriz endereçada a pessoas racionais, para sua orientação [07]. Neste contexto, as leis, em consonância com a teoria da justiça, não precisam satisfazer necessariamente, em todos os casos, os princípios preceituais do estado de direito, mas, tendo em mente que esses princípios preceituais derivam de uma noção ideal, espera-se tão-somente que elas se aproximem dessa noção [08]. Com efeito, outra discussão relevante posteriormente intentada por Rawls é que a melhor ordenação, tendo em vista um sistema de sanções ponderado com relação às desvantagens pelas partes na convenção constituinte, é aquele que minimiza os riscos, referentes ao sistema de sanções, quais sejam: 1) o de que não seja atendida a necessidade de cobrir os gastos da manutenção do organismo e, 2) o da probabilidade de que essas sanções venham a interferir erroneamente na liberdade dos cidadãos.

Assim, para Rawls, está claro que em condições iguais os perigos para a liberdade são menores quando uma lei é administrada imparcial e regularmente de acordo com o princípio da legalidade [09]. É interessante notar que a liberdade, neste contexto, é um complexo de direitos e deveres definidos pelas instituições [10] e que o seu exercício se dá dentro daquilo que determina a lei em base nas expectativas legítimas. Esta é estabelecida quando as normas do sistema jurídico são justas. Assim, ela constitui a base que possibilita que as pessoas confiem umas nas outras e reclamem quando não vêem suas expectativas satisfeitas, de modo que, se as bases dessas reivindicações forem incertas, os limites da liberdade também o serão. Para que as obrigações decorrentes constituam as bases para expectativas legítimas, pressupondo que essas sejam regras equitativas ou justas, basta que um grupo de indivíduos se filie a essas instituições e aceite os benefícios daí resultantes [11].

De acordo com Rawls, o dever natural mais importante, sob a ótica da teoria da justiça, é o de apoiar e promover as instituições justas. Este dever tem duas implicações, quais sejam: os membros devem obedecer, por um lado, as instituições que lhes dizem respeito e, por outro lado, os membros devem cooperar na criação de instituições justas [12]. Desse dever origina-se o comprometimento de todos. Supondo-se que a constituição básica da sociedade seja justa, ela será estavelmente mantida mediante o apoio dos membros.

Este princípio, em contraste com o princípio utilitarista, é escolhido por combinar e ser coerente com os dois princípios da justiça. Assim, a estabilidade é assegurada, mediante o apoio dos membros, através do senso de justiça dos cidadãos, sendo este, inclusive, um dos aspectos da personalidade moral. O outro aspecto, no entender de Rawls, é sua capacidade para ter uma concepção de bem.

Outro dever natural, citado por Rawls, é o do respeito mútuo, que trata especificamente do manifestar a uma pessoa o respeito merecido como ser moral, caracterizado pelos dois aspectos acima referidos. A razão para reconhecer este dever está no reconhecimento dos cidadãos de que, no convívio social, precisam da garantia da estima de seus consócios [13].

Acerca da explanação em torno do dever e da obrigação, o princípio da eqüidade é particularmente relevante, pois afirma que cada pessoa deve fazer a sua parte, especificada pelas regras de uma instituição. Este princípio tem duas partes: a primeira afirma como contraímos obrigações e a segunda estabelece a condição de que a instituição envolvida seja justa. Assim, a obrigação é só originada mediante a existência de certas necessidades básicas, e o termo dever é destinado às exigências morais derivadas do princípio de eqüidade, enquanto que o termo de deveres naturais é destinado ás demais exigências [14].

Tendo isso em mente, de acordo com Rawls, para explicar obrigações baseadas na confiança precisamos tomar como premissa o princípio de eqüidade. Assim, a justiça como eqüidade apregoa que os deveres e obrigações naturais surgem unicamente em virtude de princípios éticos, os quais seriam escolhidos na posição original. Esses critérios, juntamente com os fatos relevantes das circunstâncias imediatas que determinam nossos deveres e obrigações, destacam o que conta como razão moral [15].

Além disso, Rawls propõe uma questão: em que medida e em quais circunstâncias deve-se continuar a obedecer a uma lei injusta? A injustiça de uma lei, afirma Rawls, não é justificativa suficiente para não se obedecer a ela, posto que as leis são vistas como obrigatórias, não excedendo certos limites de injustiça, quando a estrutura básica de uma sociedade é razoavelmente justa. Uma lei injusta, em linhas gerais, em determinadas ocasiões, deve ser obedecida tendo-se em vista o objetivo de se obter as vantagens de um procedimento legislativo eficaz e de não incorrer em prejuízos à estrutura básica de uma sociedade, quando esta é razoavelmente justa [16]. Esta questão conduz à outra relevante discussão na teoria rawlsiana: sua concepção dos limites da desobediência civil.

No plano internacional, Rawls desenvolve a idéia de tolerância estendida aos povos decentes. A discussão em torno das leis, a qual está vinculada ao sistema de direito, pertence a criterização para que as sociedades hierárquicas decentes pertençam, como membros de boa reputação, a uma Sociedade dos Povos razoável. Destes dois critérios elencados por Rawls, o mais relevante à questão do direito é o segundo, o qual é dividido em três partes. Primeiro: o sistema de direito deve assegurar a todos os membros do povo os direitos humanos; segundo: deve impor deveres e obrigações morais a todas as pessoas dentro do respectivo território; e terceiro: deve haver uma crença sincera e não irrazoável, da parte dos juízes e outros funcionários que administram o sistema jurídico, de que a lei é realmente guiada por uma idéia de justiça e do bem comum [17].

A discussão acerca das leis na teoria política de Rawls é situada, assim, dentro desse contexto. Por um lado, no âmbito interno, numa dependência aos dois princípios que regem uma sociedade, sobretudo em sua estrutura básica, posto que eles são aplicáveis tanto às instituições quanto aos indivíduos; e, por outro, no âmbito externo, aos direitos humanos. Assim, as leis, devidamente compreendidas e situadas, estão a serviço da justiça de modo a promover entre todos os membros a justiça eqüitativamente.


1. O SUJEITO RAWLSIANO

Rawls concebe sua teoria da justiça a partir de uma base kantiana, especificamente no que concerne à noção de sujeito, isto é, de pessoas, concebidas como racionais [18]. Nesse aspecto, Rawls se insere na concepção tradicional quanto a definição de sujeitos.

Segundo o filósofo, o sujeito é possuidor de uma personalidade moral a qual tem duas qualidades essenciais, quais sejam, a concepção de bem e o senso de justiça. É de posse dessas duas qualidades que será possível desenvolver no sujeito o aprendizado da justiça.


1.1 Personalidade Moral

Uma primeira qualidade do sujeito, na teoria de Rawls, é que ele é possuidor de uma personalidade moral, desenvolvida adequadamente ao longo de sua vivência em contato com as instituições da estrutura básica da sociedade, em uma sociedade bem-ordenada, regulada, portanto, por instituições justas. Assim, no processo de formação da personalidade moral, a justiça é inicialmente desenvolvida no sujeito por meio de práticas institucionais. Segundo Oliveira, o senso de justiça e a faculdade de concepção do bem – componentes elementares da personalidade moral – são inerentes à idéia de pessoas morais, livres e iguais, vivendo numa sociedade democrática [19].


1.1.1Concepção de Bem

A concepção de bem, na teoria moral rawlsiana, é um dos poderes morais atribuídos ao sujeito, ao indivíduo. Segundo Rawls, a definição do bem, que é puramente formal, afirma simplesmente que o bem de uma pessoa é determinado por um plano racional de vida que ela escolheria com racionalidade deliberativa. E o bem da pessoa é definido como a execução bem-sucedida de um plano racional de vida.


1.1.2 Senso de Justiça

O senso de justiça é desenvolvido, de acordo com Rawls, no seio de uma sociedade bem-ordenada. Esta é caracterizada por Rawls como aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum de justiça. Desse modo, em tal sociedade, todos os indivíduos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios da justiça, sendo, reverbera Rawls, esse fato publicamente reconhecido. [20] A justiça como eqüidade, neste sentido, é estruturada para estar de acordo com essa idéia de sociedade.

Outra característica da sociedade bem-ordenada apontada por Rawls refere-se ao fato de que ela é regulada por sua concepção de justiça, o que implica que seus membros têm um desejo forte e normalmente efetivo de agir em conformidade com os princípios da justiça. Como uma sociedade bem-ordenada perdura ao longo do tempo, no entender de Rawls, a sua concepção de justiça é provavelmente estável, isto é, quando as instituições são justas – da forma como essa concepção define –, os indivíduos que participam dessa ordenação adquirem o senso correspondente de justiça, e o desejo de fazer a sua parte para mantê-las. Para Rawls, uma concepção da justiça é mais estável do que outra se o senso de justiça que tende a gerar for mais forte e tiver maior probabilidade de sobrepujar inclinações perturbadoras, e se as instituições que ela permite não fomentam impulsos e tentações tão fortes no sentido de agir de forma injusta. Além disso, a estabilidade de uma concepção depende de um equilíbrio de motivos, ou seja, o senso de justiça que ela cultiva e os objetivos que encoraja devem normalmente ser mais fortes que as propensões para a injustiça. [21]

A estabilidade, para Rawls, é evidentemente um traço desejável nas concepções morais. As pessoas na posição original, em circunstâncias iguais, adotarão o sistema de princípios mais estável. Rawls entende que uma concepção da justiça, por mais atraente que seja por outros motivos, terá defeitos graves se, à luz do que denomina psicologia moral, não conseguir produzir o devido desejo de agir segundo seus princípios. O critério da estabilidade, neste aspecto, não é decisivo, haja vista que algumas concepções o ignoram. Reportando-se, entretanto, à teoria de Bentham, na qual este sustentava tanto o princípio da utilidade quanto o do egoísmo psicológico, Rawls aduz que é impossível – na teoria de bethamita – que as pessoas tenham senso efetivo de justiça tendo-se em conta que a resultante identificação de interesses é artificial. Além disso, o máximo que o legislador pode fazer, neste caso, é conceber as instituições de modo que elas visem a persuadir os cidadãos a agirem de modo a maximizar a soma do bem-estar. [22]

A maioria das doutrinas tradicionais, no entender de Rawls, afirma que, em certo grau, a natureza humana é tal que adquirimos um desejo de agir de forma justa quando vivemos em instituições justas e delas nos beneficiamos. Na medida em que tal fato é verdadeiro, afirma o autor, uma concepção é psicologicamente adequada às inclinações humanas, sendo, nesse caso, as concepções da justiça e do bem compatíveis uma com a outra. [23]

Antes de se prosseguir, é interessante atentar, com vistas a não serem originados mal-entendidos, algumas considerações feitas pelo filósofo sobre os conceitos de equilíbrio e de estabilidade. A primeira observação de Rawls concerne ao fato de que estes conceitos sãos aplicados a um certo tipo de sistema, no qual exista equilíbrio, o que acontece quando se atinge um estado que persiste indefinidamente, contanto que nenhuma força externa o perturbe ao longo do tempo. Rawls entende que para definir precisamente o estado de equilíbrio do sistema, se deve cuidadosamente demarcar os limites do sistema. Neste sentido, o autor distingue três passos que considera essenciais: i) identificar o sistema e distinguir as forças internas das externas; ii) definir os estágios do sistema; iii) especificar as leis que ligam os diferentes estágios. [24]

Ora, para o autor, um equilíbrio é estável quando qualquer desvio em relação a ele, por motivos de ordem externa, mobiliza forças internas ao sistema que tendem a trazê-lo de volta a seu estado de equilíbrio. Esse não é o caso, se os motivos forem demasiado grandes. Por contraste, Rawls argumenta que o equilíbrio é instável quando um distanciamento em relação a ele gera no sistema forças que conduzem a mudanças ainda maiores. Assim, Rawls entende que os sistemas são mais ou menos instáveis, dependendo da intensidade das forças internas disponíveis para trazê-los de volta ao equilíbrio. Tendo-se em conta que na prática todos os sistemas sociais estão sujeitos a algum tipo de distúrbios, Rawls considera que eles são estáveis praticamente se os desvios em relação às suas posições normais de equilíbrio, depois de um período de tempo, despertem forças suficientes para restaurar essas posições ou delas se aproximar. [25]

Além disso, Rawls conjectura que os sistemas relevantes, no tocante a este assunto, são as estruturas básicas da sociedade bem-ordenadas correspondentes a diversas concepções de justiça quando elas satisfazem os princípios adequados da justiça – tendo-se em conta que este fato seja reconhecido de público pelos indivíduos que participam desse complexo de instituições. Rawls supõe, na avaliação da estabilidade desses sistemas complexos de instituições, que os limites são dados pela noção de comunidade nacional independente [26]. Outra observação feita por Rawls é que o equilíbrio e a estabilidade, no presente caso, devem ser definidos em relação à justiça da estrutura básica e a conduta moral dos indivíduos. Disso, Rawls aduz que a estabilidade das instituições, haja vista que a estabilidade de uma concepção de justiça não implica que as instituições não se alterem, por mais que elas mudem, permanecem justas ou aproximadamente justas quando faz-se ajustes em vista das novas circunstâncias sociais de forma que os desvios em relação à justiça são efetivamente corrigidos ou mantidos dentro de limites toleráveis por forças internas ao sistema. Exatamente entre essas forças, Rawls afirma que o senso de justiça tem fundamental papel. Neste aspecto, assim conclui Rawls, os sentimentos morais são necessários para garantir que a estrutura básica da sociedade seja estável em relação à justiça. [27]

Existem, na perspectiva rawlsiana da teorização acerca da origem dos sentimentos morais – a aprendizagem moral –, duas tradições principais: i) a primeira, nascida historicamente do empirismo e fundada nas idéias de filósofos utilitaristas, de Hume a Sidgwick, sendo, recentemente encontrada de forma mais desenvolvida na teoria da aprendizagem social; e ii) a segunda, derivada do racionalismo e ilustrada por Rousseau e Kant, e, recentemente, na teoria de Piaget. Sobre a primeira tradição, Rawls aduz que um dos argumentos principais dessa teoria é o de que o objetivo do treinamento moral é fornecer motivações que faltam, isto é, o desejo de fazer o que é correto apenas porque é correto, e o desejo de não fazer o que é errado. Nesse sentido, a conduta correta é aquela que geralmente beneficia os outros e a sociedade e, em geral, não há motivo para adotá-la. A conduta errada, por outro lado, é o comportamento prejudicial para os outros e para a sociedade, que, de acordo com Rawls, tem-se freqüentemente um motivo para adotá-la. A sociedade deve, explana o autor, de alguma forma, sanar esses defeitos, o que se consegue pela aprovação e desaprovação dos pais e de outras pessoas em posição de autoridade que se utilizam, quando faz-se necessário, de recompensas e punições. Mediante vários processos psicológicos, acaba-se adquirindo um desejo de fazer o que é correto e um repúdio ao que é errado. Rawls aponta ainda uma segunda tese, qual seja a de que o desejo de estar de acordo com os padrões morais é normalmente despertado precocemente antes mesmo de adquirir-se um entendimento adequado dos motivos dessa norma. [28]

Rawls argumenta que a teoria freudiana é similar a essa visão em aspectos fundamentais. Segundo Rawls, Freud afirma que os processos pelos quais a criança vem a ter atitudes morais giram em torno da situação edipiana e dos profundos conflitos originados por ela. Assim, os preceitos morais reforçados por aqueles que ocupam posições de autoridade são aceitos pela criança como o melhor modo de resolver as suas ansiedades, sendo as atitudes resultantes representadas pelo superego tendidas a ser duras e punitivas, refletindo as tensões da fase edipiana. Rawls critica esta visão, em função de que os pais e outros que ocupam posições de autoridade tendem de várias formas a equivocar-se e a agir de modo egoísta na utilização do elogio e da culpa. Por conseguinte, em decorrência da aplicação de recompensas e punições, decorre disso que, as primeiras atitudes morais das crianças serão irracionais e injustificadas, haja vista que não foram objeto de um exame racional. [29]

Acerca da segunda tradição, Rawls argúi que a aprendizagem moral não é tanto uma questão de fornecer motivos que faltam, mas sim, de acordo com a tendência natural, formula o livre desenvolvimento de capacidades intelectuais e emocionais inatas. Deste ângulo, quando as capacidades de entendimento amadurecem e as pessoas reconhecem o seu lugar na sociedade, sendo capazes de adotar o ponto de vista dos outros, elas apreciam os benefícios mútuos do estabelecimento de termos eqüitativos de cooperação social. Para Rawls, as pessoas têm uma simpatia natural com as outras pessoas, e uma suscetibilidade inata para os prazeres que o companheirismo e o autodomínio proporcionam, os quais fornecem uma base afetiva para os sentimentos morais – se as pessoas são capazes de ter um entendimento claro das relações com os consócios, de uma perspectiva adequadamente geral. Uma vez que seja assim, essa tradição considera, no entender de Rawls, os sentimentos morais como conseqüência natural de uma plena valorização da natureza social das pessoas. [30]

Segundo Rawls, Mill expressa essa visão argumentando que as organizações de uma sociedade justa são para nós tão adequadas que qualquer condição obviamente necessária para o seu estabelecimento é aceita da mesma forma que uma sociedade física a qual condiciona indispensavelmente as pessoas a terem consideração pelos outros, com base em princípios mutuamente aceitáveis de reciprocidade. Nesse sentido, a tendência à sociabilidade fornece uma base sólida para os sentimentos morais sem que se perca a natureza individual. Para o filósofo, a aprendizagem moral não é tanto uma questão de adquirir novos motivos, haja vista que estes surgirão por si mesmos, uma vez que se completem os desenvolvimentos necessários nas capacidades intelectuais e emocionais. Disso procede, uma vez que o entendimento da criança é primitivo, que um entendimento completo das concepções morais deve aguardar a maturidade. Tendo-se em conta que os princípios do justo e da justiça para a teoria racionalista nascem da natureza humana e não fazem oposição a seu bem, Rawls considera-a mais feliz neste quadro. [31]

Rawls passa a descrever os estágios do desenvolvimento moral pelos quais o indivíduo passa. O autor aponta três estágios, a saber: a moralidade de autoridade, a moralidade de grupo e a moralidade de princípio.

O primeiro deles é a moralidade de autoridade que em sua forma primitiva é a moralidade da criança. Rawls admite que o senso de justiça é adquirido gradualmente pelos membros mais jovens da sociedade à medida que vão crescendo, e que a sucessão de gerações e a necessidade de ensinar às crianças atitudes morais é uma das condições da vida humana. [32] Neste primeiro estágio, Rawls parte da hipótese de que a estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada inclui de alguma forma a família e que, por primeiro, as crianças estão legitimamente submetidas à autoridade de seus pais. Rawls entende que é característico da situação da criança que ela não tenha condições de avaliar a validade dos preceitos e injunções que lhe são impostos por aqueles que ocupam posições de autoridade. A criança carece tanto de conhecimento como de entendimento com base nos quais, segundo o autor, a autoridade de seus pais possa ser desafiada de forma que não pode ter fundamentos para duvidar das determinações de seus pais. [33] Rawls supõe igualmente que os pais amam a criança e que esse sentimento, com o tempo, torna-se recíproco. Neste aspecto, Rawls pergunta-se pelo modo como essa mudança ocorre. Para responder esta questão, o autor supõe o seguinte princípio psicológico, qual seja, o de que a criança vem a amar seus pais apenas se estes manifestam primeiro o seu amor. Nesta perspectiva, as ações da criança são inicialmente motivadas por certos instintos e desejos, e seus objetivos são regulados por um interesse próprio racional – segundo Rawls, num sentido adequadamente restrito. [34]

Ademais, as condições que favorecem o desenvolvimento da moralidade de autoridade, que deve estar subordinada aos princípios da justiça, por parte das crianças, para o autor, são as seguintes: i) os pais devem amar a criança, e serem objetos dignos de sua admiração, o que fará com que elas despertem em si um senso de seu próprio valor e o desejo de tornar-se o tipo de pessoa que são seus pais; ii) devem enunciar regras inteligíveis e claras, de compreensão da criança, definindo os motivos para essas injunções até eles poderem ser entendidos. Rawls presume que, quando essas condições estão ausentes, o desenvolvimento moral deixa de ocorrer. O autor considera que a aceitação da moralidade de autoridade pela criança consiste na sua disposição de seguir preceitos que não podem só parecer (às crianças) arbitrário, mas que vão no sentido oposto ao de suas inclinações naturais. Se a criança adquirir o desejo de obedecer as proibições impostas pelos pais ela concluirá que elas expressam formas de ação as quais caracterizam o tipo de pessoa que ela desejaria ser. [35]

O segundo estágio do desenvolvimento moral é denominado por Rawls de moralidade de grupo. Esta moralidade, diferentemente da moral de autoridade para a criança, a qual consiste em grande parte numa coleção de preceitos, tem seu conteúdo ditado pelos padrões morais adequados ao papel do indivíduo nas várias associações às quais pertence. Segundo Rawls, esses padrões incluem as regras da moralidade ditadas pelo senso comum e, ainda de acordo com o autor, são impressos nele pela aprovação ou pela desaprovação daqueles que detêm a autoridade, ou pelos outros membros do grupo. Desse modo, para Rawls, nesse estágio a família é considerada uma pequena associação hierarquicamente definida na qual cada membro tem direitos e deveres – de forma que à medida que a criança cresce ela aprende os padrões de conduta adequados para alguém na sua posição. O autor entende, neste sentido, que as virtudes de um bom filho ou filha são explicadas pelas expectativas dos pais que se manifestam por meio de suas aprovações e desaprovações. Semelhantemente, há na escola e na vizinhança grupos com os quais se aprende certas ordenações, às quais se corresponde, aprende-se as virtudes de um bom aluno e colega de classe, assim como os ideais de um bom parceiro e companheiro. Esse tipo de visão moral, no entender de Rawls, se estende aos ideais posteriormente adotados na vida e, ainda, também a várias funções e ocupações adultas e ao lugar de uma pessoa como membro da sociedade. Neste sentido, o autor entende que a moralidade de grupo inclui um grande número de ideais dos quais cada um é definido de modo adequado para a respectiva função ou papel. Além disso, o entendimento moral aumenta, nesta perspectiva, à medida que as pessoas mudam de lugar passando por uma seqüência de posições, no curso da vida. Essa seqüência correspondente de ideais exige cada vez mais um maior juízo intelectual e discriminações morais mais elevadas. [36]

Rawls entende que, quando uma pessoa implementa a sua capacidade para sentimentos de companheirismo, adquirindo laços de acordo com a primeira lei psicológica, então, na medida em que seus consócios, com evidente intenção, correspondem aos seus deveres e obrigações, essa pessoa desenvolve sentimentos amigáveis em relação a eles, juntamente com sentimentos de confiança: esse princípio é uma segunda lei psicológica. À medida que os indivíduos entram no grupo ao longo de um período de tempo, eles adquirem esses laços quando os outros consócios mais antigos fazem a parte que lhes é correspondente dentro da sociedade. Neste entender, se os indivíduos se associam a um sistema de cooperação social e agem regularmente com a evidente intenção de apoiar suas regras justas, laços tendem a acontecer entre eles, vinculando-os mais fortemente ao sistema, de forma que estabelecidos esses laços, a não correspondência ao que se espera de uma pessoa dentro do sistema, tende a produzir sentimentos de culpa quando não cumpre a sua parte. Isso é evidenciado pela inclinação de sanar os males causados aos outros – reparação – assim como a sujeição a admitir que o que fez foi injusto e ao consentimento à punição e à censura. [37]

O terceiro estágio do desenvolvimento moral é, segundo Rawls, o da moralidade de princípios. Uma pessoa que atinge as formas mais complexas da moralidade de grupo, entende o autor, certamente tem um entendimento dos princípios da justiça assim como já tem desenvolvido um apego a vários indivíduos e comunidades em particular, estando, neste sentido, disposto a seguir os padrões morais que se aplicam a ele nas várias posições que ocupa, os quais são sustentados pela aprovação ou desaprovação social. Além disso, quando o indivíduo associa-se a outros e aspira a corresponder a essas concepções éticas, ele está interessado em conquistar a aceitação para sua conduta e seus objetivos. Neste momento, Rawls caracteriza como sendo o estímulo de sua obediência aos princípios da justiça, em grande parte, os laços de amizade e companheirismo com os outros e seu interesse pela aprovação da sociedade num sentido mais amplo. A partir disso, Rawls passa a considerar o processo pelo qual o um indivíduo se apega a esses princípios, segundo ele, de ordem superior, com o intuito de ser uma pessoa justa. [38]

Rawls argumenta, na explanação acerca do surgimento da moralidade de princípios, que a moralidade de grupo conduz a um conhecimento dos padrões de justiça. Numa sociedade bem-ordenada, esses padrões não apenas definem a concepção pública de justiça, mas também os cidadãos adquirem o interesse nas relações políticas, e aqueles que ocupam cargos legislativos e judiciais e outros semelhantes, são obrigados a aplicá-los e a interpretá-los. Neste sentido, estes têm muitas vezes de adotar a posição dos outros com o intuito de se atingir um equilíbrio razoável entre as reivindicações conflitantes e de ajustar os vários ideais secundários da moralidade de grupo. O filósofo entende que colocar os princípios da justiça em prática exige adotar a seqüência de quatro estágios [39]. Rawls alerta ainda que, conforme uma situação o exija, adota-se a perspectiva de uma convenção constituinte, ou de uma assembléia legislativa. O indivíduo acaba por adquirir, nesta perspectiva, um domínio desses princípios, entendendo os valores que eles garantem e o modo pelo qual eles trazem benefícios para todos. Isso, de acordo com Rawls, conduz o indivíduo à aceitação desses princípios segundo uma terceira lei psicológica, a qual afirma que, quando as atitudes de amor, amizade e confiança mútuos – originados de acordo com as duas leis psicológicas precedentes –, e o reconhecimento de que o indivíduo mesmo e aqueles com os quais se preocupa são os beneficiários de uma instituição justa e duradoura, tendem a criar no indivíduo o senso de justiça correspondente. Desse modo, o indivíduo desenvolve o desejo de aplicar os princípios da justiça e de agir em conformidade com eles no momento em que percebe como as organizações sociais que representam promoveram o seu bem e o bem daqueles com os quais se associou. [40]

O senso de justiça, de acordo com o autor, manifesta-se de dois modos: i) leva o indivíduo a aceitar que os princípios da justiça se aplicam à sociedade e das quais ele e seus consócios se beneficiam. Nesta medida, o indivíduo tende, no entender do filósofo, a se sentir culpado quando não honra seus deveres e obrigações, mesmo não estando vinculado por nenhum sentimento especial de companheirismo àqueles às custas dos quais consiga vantagens. Rawls aduz ainda que o corpo de cidadãos como um todo não se liga por laços de companheirismo entre os indivíduos, mas pela aceitação de princípios públicos da justiça. É a lealdade a esses princípios que fornece uma perspectiva unificada a partir da qual os indivíduos podem resolver suas divergências. ii) fomenta uma disposição de trabalhar em favor da construção de instituições justas, e no sentido de reformar as instituições existentes quando a justiça o exija. [41]

Quando o sujeito vai contra o senso de justiça, Rawls aduz que ele explica se sentimento de culpa – segundo o autor, experimentado pela primeira vez no sentido estrito – referindo-se aos princípios da justiça. Desse modo, uma vez aceita uma moralidade de princípios, as atitudes morais deixam de estar unicamente ligadas ao bem-estar e à aprovação de grupos específicos. Neste sentido, elas são moldadas por uma concepção do justo, escolhida independentemente dessas contingências, haja vista que os sentimentos morais manifestam uma independência em relação às circunstâncias acidentais [42].

Apesar da independência dos sentimentos morais em relação às contingências, Rawls argumenta que o apego natural do indivíduo a pessoas e grupos específicos ainda tem lugar apropriado no âmbito interno de sua teoria moral tendo em conta que dentro da moralidade de princípios as infrações que causavam culpa originavam culpa e ressentimento – em relação ao grupo –, e outros sentimentos morais, ocasionam agora estes sentimentos no sentido estrito. Além disso, o indivíduo, em sua justificativa, faz referência aos princípios pertinentes quando explica suas emoções.[43]

Rawls afirma que, à primeira vista, pode parecer estranho que venhamos a ter o desejo de agir segundo uma concepção do justo e da justiça. Neste sentido, pergunta-se como é possível que princípios morais conquistem nossa afeição. Na justiça como eqüidade existem várias respostas a essa pergunta: i) em primeiro lugar os princípios morais necessariamente têm um certo conteúdo e definem modos já aceitos de promover os interesses humanos visto que foram escolhidos por pessoas racionais para julgamento de reivindicações concorrentes. As instituições, assim como as ações humanas, são avaliadas segundo a garantia que dão a esses princípios. ii) em segundo lugar, o senso de justiça é um prolongamento do amor pela humanidade. Como apontado no parágrafo 30, de Uma Teoria da Justiça, a benevolência fica sem rumo se os princípios da justiça não a orientarem.

A diferença básica entre o senso de justiça e o amor pela humanidade, na visão de Rawls, é que o amor pela humanidade é sepererrogatório, indo além das exigências morais, e não invocando as isenções permitidas pelos princípios de obrigação e dever naturais. Para Rawls, é evidente a íntima ligação desses dois sentimentos os quais são definidos, em grande parte, pela mesma concepção de justiça. Além disso, a interpretação kantiana desses princípios demonstra que, ao agiram de acordo com eles, as pessoas expressam sua natureza de seres racionais livres e iguais. O senso de justiça tem como objetivo o bem-estar dos indivíduos de forma bastante direta: apóia as ordenações que possibilitam que todos expressem sua natureza comum. Ora, sem um senso de justiça comum ou coincidente, o civismo não pode existir. Assim, o desejo de agir de maneira justa não é uma forma de obediência cega a princípios arbitrários sem relação com objetivos racionais. [44]

Rawls esclarece que não pretende argumentar que a justiça como eqüidade seja a única doutrina capaz de interpretar o senso de justiça de um modo natural. Neste sentido, reconhece que o utilitarismo, e também o perfeccionismo, satisfazem a visão de que o sentimento de justiça pode ser caracterizado de forma a ser psicologicamente compreensível. Com efeito, aduz o autor, pareceria que a doutrina do ato de consciência é irracional. Essa doutrina, em primeiro lugar, afirma que a mais elevada motivação moral é o desejo de fazer o que é correto e justo simplesmente porque é correto e justo; e, em segundo lugar, que embora outros motivos tenham certamente algum valor moral, exemplificando, o desejo de fazer o que é porque assim procedendo aumenta-se a felicidade humana, esse desejo tem menos valor moral do que o de fazer o que é correto unicamente por ser correto. [45]

Não obstante estas considerações, para alguém que entende e aceita o contratualismo, o sentimento de justiça não difere do desejo de agir segundo os princípios que indivíduos racionais aceitariam em uma situação inicial que concede a todos uma representação igual como pessoas morais, e tampouco é diferente de querer agir de acordo com os princípios que expressam a natureza das pessoas como seres racionais livres e iguais. Os princípios da justiça correspondem a essas descrições, o que permite, segundo Rawls, dar uma interpretação aceitável do que seja o senso de justiça. Para Rawls, o fato de o indivíduo ser governado por princípios morais significa que queremos viver com os outros em termos que todos reconheceriam como eqüitativos, de uma perspectiva que todos aceitariam como razoável. [46]

O autor observa ainda que a moralidade de princípios assume duas formas: i) uma corresponde ao senso do justo e de justiça; e ii) o amor pela humanidade e pelo autodomínio. Salienta que a segunda é supererrogatória, ao passo que a primeira não o é. A moralidade de princípios, em sua forma normal, inclui as virtudes das moralidades precedentes – a de grupo e de autoridade. Além disso, ela define o último estágio no qual todos os ideais secundários são entendidos e organizados em um sistema coerente mediante princípios adequadamente gerais. No tocante às qualidades das outras modalidades, elas recebem a sua explicação e justificativa dentro do sistema mais amplo, e suas respectivas reivindicações são ajustadas pelas prioridades atribuídas à concepção mais abrangente.

Rawls argumenta que a moralidade supererrogatória – dependendo da direção na qual as exigências da moralidade de princípios são espontaneamente ultrapassadas – tem dois aspectos, quais sejam: i) por um lado, o amor pela humanidade que se manifesta na promoção do bem comum de modos que vão muito além de nossos deveres e obrigações naturais [47]; e ii) por outro lado, a moralidade de autodomínio, que se manifesta em sua forma mais simples na atitude de cumprir sem nenhuma dificuldade as exigências do justo e da justiça. [48]


1.2 Liberdade

A liberdade na teoria rawlsiana é um conceito complexo: por um lado – a partir da idéia implícita no primeiro princípio da justiça –, implica necessidades básicas, como a liberdade política – direito de voto e de ocupar cargo público –, a liberdade de expressão e de reunião, a liberdade de consciência e de pensamento, a liberdades de pessoa – proteção psicológica contra agressão física (integridade) –, o direito à propriedade privada e a proteção, em consonância com o conceito de estado de direito, contra a prisão e a detenção arbitrárias [49], as quais, em consonância com o primeiro princípio devem ser iguais para todos; por outro lado, de acordo com o que escreve em, Uma Teoria da Justiça, "a descrição geral de uma liberdade assume a seguinte forma: esta ou aquela pessoa (ou pessoas) está (ou não está) livre desta ou daquela restrição (ou conjunto de restrições) para fazer (ou não fazer) isto ou aquilo". [50]

Nesta medida, de acordo com o autor, a liberdade estaria restrita aos limites daquilo que a lei estipula, ou não, como sendo permissível fazer. É esclarecedora, com relação a esse aspecto, a argumentação de Rawls:

"Nesses casos, a liberdade é uma certa estrutura de instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e deveres. Colocadas nesse contexto, as pessoas têm liberdade para fazer alguma coisa quando estão livres de certas restrições que levam a fazê-la ou a não fazê-la, e quando sua ação ou sua ausência de ação está protegida contra interferência de outras pessoas. Se, por exemplo, consideramos a liberdade de consciência como a lei a define, então os indivíduos têm essa liberdade básica quando estão livres para perseguir seus interesses morais, filosóficos ou religiosos sem restrições legais que exijam que eles se comprometam com qualquer forma particular de prática religiosa ou de outra natureza, e quando os demais têm um dever estabelecido por lei de não interferir. Um conjunto bastante intrincado de direito e deveres caracteriza qualquer liberdade básica e particular." [51]

Com relação à determinação da liberdade de ação, o sujeito é livre para fazer aquilo que desejar, dentro daquilo que não é especificado como ação criminosa, isto é, o sujeito é livre para fazer o que quiser desde que a lei não proíba esta ação.

Em, O Liberalismo Político, aludindo ao processo de elaboração das leis, Rawls argumenta que "quando também consideramos o papel distinto do processo político na determinação das leis e políticas que devem regular a estrutura básica, não é implausível que somente as liberdades políticas devam ser objeto da garantia especial do valor eqüitativo. Essa garantia constitui um ponto focal natural entre a liberdade meramente formal, de um lado, e alguma espécie de garantia mais ampla para todas as liberdades fundamentais, do outro" [52]. Aqui, portanto, o autor afirma que as liberdades políticas é que devem ser equitativamente garantidas. Assim, apenas o conjunto de liberdades, compondo o quadro político é que, de acordo com a igualdade deliberada pelo primeiro princípio, devem ser garantido equitativamente. É mister esclarecer que as demais liberdades não devem e não são inacessíveis às pessoas, mas estas devem ser garantidas eficazmente de acordo com o prisma da igualdade.


1.3 Autonomia

A autonomia, na teoria de Rawls, é um conceito estritamente político, não político-moral, conforme sustenta Kant [53]. Neste sentido, de acordo com Oliveira, a autonomia rawlsiana representa a ordem de valores políticos embasados nesses mesmos princípios e inseparáveis de concepções políticas da sociedade e da pessoa. [54]


1.3.1 Posição Original

A autonomia, na teoria política do filósofo, é garantida efetivamente pela idéia de posição original [55]. Como já apontado, Rawls coloca-se na esteira do contratualismo por entender que esta terminologia contém algumas vantagens quando considerada a concepção de pessoas como livres e iguais. Nesta sua elaboração contratualista são particularmente relevantes os conceitos de posição original bem como os dois princípios da justiça, tendo em vista uma situação inicial mediante a qual são escolhidos princípios para a formulação de uma teoria da justiça assim como de uma sociedade bem-ordenada, concebidas a partir da justiçacomo equidade. O conceito de posição original empregado por Rawls, em sua teoria política, segundo seu próprio juízo, "é o que apresenta, do ponto de vista filosófico, a interpretação mais adequada dessa situação de escolha inicial para os propósitos de uma teoria da justiça," [56] tendo em vista a realização da liberdade e da igualdade, "(...) uma vez que se considere a sociedade como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais." [57] Dessa forma, segundo o autor, esse conceito é introduzido com a finalidade de descobrir qual concepção de justiça especifica os princípios mais adequados para realizar a liberdade e a igualdade. A este respeito, argumenta Rawls:

"Introduzimos uma idéia como a de posição original porque não parece haver forma melhor de elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica a partir da idéia fundamental da sociedade como um sistema duradouro e equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. Isso parece particularmente evidente quando pensamos na sociedade como algo que se estende por gerações, herdando sua cultura pública e suas instituições sociais e políticas (juntamente com seu capital real e estoque de recursos naturais) daqueles que viveram antes." [58]

Ora, para supor essa escolha dos princípios, Rawls supõe, igualmente, uma posição original, que é um dispositivo puramente hipotético e ahistórico, em que, mediante condições predeterminadas, as partes representativamente escolheriam estes princípios tendo por objetivo uma sociedade baseada na justiça como equidade. Nesta posição original, essas pessoas representativas estariam sob o Véu da Ignorância, conceituado pelo pensador como total privação do conhecimento da posição que se ocupa na sociedade e das partes que representam. Esta mesma idéia tem aplicação ao conhecimento sobre raça e grupo ético, gênero e talentos naturais.

Outra condição é que as partes são iguais como pessoas éticas, concebidas como "criaturas que têm uma concepção de seu próprio bem e que são capazes de ter um senso de justiça" [59]. A igualdade das partes é baseada na similaridade desses dois pontos. Assim, têm elas os mesmos direitos no processo de escolha dos princípios, e estes, a partir destas condições, são definidos "como sendo aqueles que pessoas racionais preocupadas em promover seus interesses consensualmente aceitariam em condições de igualdade nas quais ninguém é consciente de ser favorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais." [60]

Os dois princípios da justiça são produtos do consenso das partes contratuantes na posição original, elaborados a partir daquelas condições anteriormente especificadas. Esses princípios [61], em sua formulação total, segundo Rawls, são:

"Primeiro Princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.

Segundo Princípio: as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:

a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e

b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades." [62]

A aplicação destes princípios, em primeiro lugar, destina-se à estrutura básica da sociedade de forma que governam a atribuição de direitos e deveres e regulam as vantagens econômicas e sociais. Segundo Rawls, a formulação de tais princípios tem como pressuposto que a estrutura básica da sociedade seja dividida em duas partes: o primeiro princípio é aplicável à primeira parte, que compõe o sistema social o qual define e assegura as liberdades básicas iguais; e o segundo princípio é aplicável à segunda parte, que especifica e estabelece as desigualdades de ordem econômicas e sociais. [63] É patente esclarecer que os dois princípios são compreendidos em ordem serial, isto é, o primeiro antecede o segundo, de forma que não é permitida a violação das liberdades básicas em prol de vantagens econômicas e sociais, em outras palavras, não se admite a permuta entre liberdades básicas e ganhos sociais e econômicos por força dos princípios da justiça.

É notório, em relação aos princípios da justiça, que, de acordo com esta perspectiva da justiça, não há restrições para os tipos de desigualdades. O que se exige, porém, por parte dos princípios, é que a condição de todos seja melhorada, baseada nos benefícios que uma sociedade fundada na concepção da justiça como equidade pode oferecer.

A autonomia, sob o viés político dos indivíduos, enquanto cidadãos, na teoria de Rawls, é, pois, assegurada e garantida mediante a posição original. É através dela que estes deliberariam a escolha racional dos princípios que mais estariam em condições de realizar, dentro da estrutura básica da sociedade, a justiça.


1.4 Igualdade

A igualdade é discutida por Rawls na perspectiva da aplicação dos princípios da justiça. Ante o enunciado de que a conduta humana em relação aos animais não é regulada pelos princípios da justiça, propõe uma questão qual seja, que motivos se tem para distinguir a humanidade de outros seres vivos, e considerar que as restrições da justiça se aplicam apenas às pessoas. Segundo ele, deve-se examinar o que determina o alcance da aplicação das concepções de justiça. [64]

Com intuito de esclarecer esta questão, Rawls diz poder distinguir três níveis as quais o conceito de igualdade se aplica: i) O primeiro deles refere-se à administração das instituições como sistemas públicos de regras, nos quais, essencialmente, a igualdade é a justiça como regularidade. Assim, envolve a aplicação imparcial e a interpretação consistente de regras de acordo com preceitos tais como o da isonomia, segundo o qual casos semelhantes devem receber tratamento semelhante [65]. Nesse nível, segundo o autor, a igualdade é elemento menos discutível da idéia de justiça definida pelo senso comum.

ii) O segundo nível de aplicação da igualdade que, segundo Rawls, é muito mais difícil, refere-se à estrutura substantiva das instituições. O significado da igualdade, neste nível, é especificado pelos princípios da justiça, os quais, no raciocínio do autor, exigem que direitos básicos iguais sejam atribuídos a todas as pessoas. No que diz respeito aos animais, Rawls os exclui dessa base igualitária. Segundo ele, os animais certamente têm alguma proteção, mas o seu status não é o mesmo dos seres humanos. Em razão de se ter que considerar a que tipos de seres se deve conceder garantias da justiça, o filósofo argúi que leva ao terceiro nível, no qual surge a questão da igualdade. [66]

iii) Rawls argumenta que a resposta natural parece ser a de que são precisamente as pessoas éticas que têm direito à justiça igual, as quais distinguem-se por duas características, a saber: i) são capazes de ter – e, segundo Rawls, supõe-se que tenham – uma concepção de seu próprio bem, expressa por um plano racional de vida; ii) são capazes de ter – e, enfatiza o autor, supõe-se que adquiram – um senso de justiça, um desejo normalmente efetivo de aplicar os princípios da justiça e de agir segundo suas determinações. Rawls usa a caracterização das pessoas na posição original para determinar o tipo de seres aos quais se aplicam os princípios escolhidos. Isto porque considera-se que as partes adotam esses critérios para regular suas instituições comuns e sua conduta em relação umas às outras. Deste modo, a justiça igual é um direito daqueles que têm capacidade de participar da posição original e de agir de acordo com o respectivo entendimento comum. Aqui, é conveniente pôr em relevo que a personalidade ética, para o autor, é definida como uma potencialidade que, no devido tempo, realiza-se. [67] Assim, tão-somente é condição suficiente, para que se tenha direito à justiça igual, uma personalidade ética potencial visto que é esta personalidade moral a condição para garantir direitos aos sujeitos.


2. A NOÇÃO DE LEI

Da teoria da justiça de Rawls, sobretudo, no contexto de, Uma Teoria da Justiça, infere-se que as leis são diretrizes endereçadas a pessoas racionais para sua orientação [68], dentro da estrutura básica da sociedade, supondo que esta seja bem ordenada. Neste sentido, é somente às pessoas racionais que, de fato, cabe a obediência ou desobediência a uma lei, seja ela injusta, ou não. Tendo em conta que as partes na posição original, sob o véu da ignorância, deliberam acerca dos princípios adequados para realizar a liberdade e a igualdade, a lei, como tal, deve estar em consonância com as especificações dos princípios da justiça. Assim, raciocina Rawls:

"Depois de haver escolhido uma concepção de justiça, podemos supor que as pessoas deverão escolher uma constituição e uma legislatura para elaborar leis, e assim por diante, tudo em consonância com os princípios da justiça inicialmente acordados" [69].

Nesta medida, é exigência, numa sociedade bem-ordenada, que as leis reflitam a concepção de justiça, deliberada na posição original, nas especificações dos princípios da justiça. Disso, tem-se que a lei define a conduta dos indivíduos, concebidos como pessoas racionais, conforme apontado inicialmente. Note-se que, como Rawls se faz entender, é a lei quem define a estrutura básica da sociedade, no âmbito da qual se dá o exercício de todas as demais atividades [70]. É definindo, pois, a estrutura básica da sociedade, que a lei estabelece os parâmetros da conduta justa do indivíduo.

Nossos deveres e obrigações jurídicos, numa sociedade bem-ordenada, são estabelecidos, segundo Rawls, pelo conteúdo da lei, na medida em que este é determinável [71]. Se uma lei for imprecisa e incerta, esclarece Rawls, nossa liberdade para agir dentro da estrutura básica da sociedade também será imprecisa e incerta [72], e, consequentemente, não haverá meios que possibilitem a criação de uma base para expectativas legítimas. Disso, "se as leis são diretrizes endereçadas a pessoas racionais para sua orientação, os tribunais devem preocupar-se com a aplicação e imposição dessas regras da maneira apropriada" [73], ou seja, há a implicação na existência de um sistema jurídico, que garanta a aplicação de tais leis.

Para Rawls, a aplicação dos princípios da justiça, em primeiro lugar, destina-se à estrutura básica da sociedade de forma que esses princípios governem a atribuição de direitos e deveres. A formulação de tais princípios tem como pressuposto que a estrutura básica da sociedade seja dividida em duas partes: o primeiro princípio é aplicável à primeira parte, que compõe o sistema social que define e assegura as liberdades básicas iguais; e o segundo princípio é aplicável à segunda parte, que especifica e estabelece as desigualdades de ordem econômica e social. [74]

Além disso, Rawls compreende a aplicação dos princípios da justiça (liberdade e igualdade) em ordem serial, isto é, o primeiro antecede o segundo, num sentido lexicalmente prioritário, de forma que não é permitida a violação das liberdades básicas em prol de vantagens econômicas e sociais, em outras palavras, não se admite a permuta entre liberdades básicas e ganhos sociais e econômicos, seguramente, por força dos princípios da justiça.


2.1 A Justiça como Regularidade

O texto de Rawls que mais versa sobre a justiça como regularidade localiza-se em, Uma Teoria da Justiça. Rawls entende que a aplicação da lei deve dar-se consoante aos princípios da justiça, respeitando suas especificações. Acerca da justiça formal, diz Rawls:

"A essa administração imparcial e consistente das leis e instituições, independentemente de quais sejam seus princípios fundamentais, podemos chamar de justiça formal. Se pensamos que a justiça sempre expressa algum tipo de igualdade, então a justiça formal exige que em sua administração as leis e as instituições se devam aplicar igualmente (ou seja, do mesmo jeito) àqueles que pertençam às categorias definidas por elas. Como enfatizou Sidgwick, esse tipo de igualdade está implícito na própria noção de lei ou instituição, uma vez que ela seja considerada como um sistema de regras gerais. A justiça formal é a adesão ao princípio, ou, como disseram alguns, a obediência ao sistema"[75]

A aplicação da justiça formal, ou como o sugere o próprio Rawls, justiça como regularidade [76], ao sistema jurídico faz surgir o estado de direito. O estado de direito é, então, o resultado da aplicação ao sistema jurídico da concepção formal da justiça [77]. Este estado de direito, no entender de Rawls, está intimamente relacionado com a liberdade, visto que esta relação é evidenciada quando considera-se a noção de sistema jurídico e de sua íntima conexão com os preceitos que definem a justiça como regularidade [78].


2.1.1 O Estado de Direito

O estado de direito envolve os seguintes preceitos: i) o preceito dever implica poder; ii) o preceito casos semelhantes devem receber tratamentos semelhantes; iii) o preceito de que não há ofensa sem lei; e iv) os princípios da justiça natural.

O preceito de que dever implica poder, segundo Rawls, identifica várias características do sistema de direito. De acordo com a primeira delas, as ações exigidas ou proibidas pelo estado de direito devem ser do tipo que seja razoável que as pessoas possam fazer ou evitar, de forma que um sistema de regras dirigido para as pessoas racionais para organizar sua conduta se preocupa com o que elas podem, ou não, fazer. A segunda característica, evidenciada na idéia de que o dever implica poder, transmite a noção de que aqueles que estabelecem as leis e dão ordens fazem-no de boa fé. Neste sentido, as autoridades devem acreditar, seguramente, que as leis podem ser obedecidas. A este respeito, Rawls diz, inclusive, que a própria boa fé destas autoridades deve ser reconhecida por aqueles que são sujeitados aos seus ditames, visto que leis e ordens são aceitas se realmente se acredita que se pode obedecê-las e executá-las. Por último, este princípio preceitual expressa, segundo Rawls, a exigência de que um sistema jurídico reconheça a impossibilidade de cumprimento e obediência como defesa. Caso não o possa, que seja, pelos menos, um atenuante. O sentido disto é que, ao impor regras, um sistema jurídico deve ter em conta a capacidade, ou não, para sua execução como algo relevante. Seria um fardo insuportável para a liberdade, enfatiza Rawls, se a possibilidade de sofrer sanções se limitasse a atos acerca dos quais a execução ou não-execução não estivesse em nosso poder [79].

O princípio preceitual da isonomia, ou seja, de que casos semelhantes devem receber tratamento semelhante é relevante no sentido de que, sem este preceito, as pessoas não poderiam regular suas ações por meio de regras. Este preceito limita significativamente a discrição dos juízes e de outros que ocupam cargos de autoridade, além de que os força a fundamentar as distinções que fazem entre pessoas por meio de uma referência aos princípios e regras legais corroborantes. Sob este aspecto, este preceito, do sistema jurídico coloca em relevo a coerência [80].

O princípio preceitual da legalidade, expresso na idéia de que não há ofensa sem lei exige do sistema de direito, para Rawls, primeiro, que as leis sejam conhecidas e expressamente promulgadas; segundo, que seu significado seja claramente definido; terceiro, que os estatutos sejam genéricos tanto na forma quanto na intenção e que não sejam usados como um meio de prejudicar determinados indivíduos que podem ser expressamente nomeados (decretos confiscatórios); quarto, que infrações mais graves sejam interpretadas estritamente; e, por último, que as leis penais não sejam retroativas em detretimento daqueles aos quais se aplicam. De acordo com Rawls, estas exigências do princípio de que não há ofensa sem lei estão todas implícitas na noção de regulamentação do comportamento por normas públicas [81].

Por fim, os princípios da justiça natural devem, dentro do sistema de direito, assegurar que a ordem jurídica seja imparcial e regularmente mantida [82].


2.2 A lei legítima

O referencial teórico, concernente à lei legítima, na obra de Rawls, encontra-se na Idéia de Razão Pública revista, em, O Direito dos Povos. Para o filósofo, a idéia de razão pública, inicialmente discutida em, O Liberalismo Político, faz parte de uma concepção de sociedade democrática constitucional bem-ordenada, sendo parte da própria idéia dessa sociedade a forma e o conteúdo dessa razão porquanto a democracia ser caracterizada pelo pluralismo razoável [83]. Segundo Rawls, os cidadãos percebem que não podem chegar a um acordo com base nas suas doutrinas abrangentes irreconciliáveis. Em virtude disso, precisam considerar que tipos de razões podem oferecer razoavelmente um ao outro em matéria de questões políticas fundamentais. Assim, Rawls propõe que, na razão pública, as doutrinas abrangentes de verdade ou direito sejam substituídas por uma idéia do politicamente razoável dirigida aos cidadãos enquanto cidadãos. Além disso, para o filósofo, a idéia de razão pública não critica nem ataca qualquer doutrina abrangente, exceto na medida em que seja incompatível com os elementos essenciais da razão pública e de uma sociedade democrática. A exigência básica que se impõe, assim, no entender do autor, é que uma doutrina razoável aceite um regime democrático constitucional e a idéia de lei legítima que o acompanha [84].

Rawls esclarece que a idéia de razão pública, que é distinta do ideal da razão pública [85], explicita no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes entre si. A idéia de razão pública, no dizer de Rawls, tem uma estrutura definida em cinco aspectos, quais sejam: i) as questões políticas fundamentais às quais se aplica; ii) as pessoas as quais se aplica (funcionários do governo e candidatos a cargos públicos); iii) seu conteúdo como dado por uma conjunto de concepções políticas razoáveis de justiça; iv) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático; v) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade [86].

Além disso, Rawls assevera que a razão pública dá-se de três formas, a saber: i) como razão de cidadãos livres e iguais, é a razão do público; ii) seu tema é o bem público no que diz respeito a questões de justiça fundamental, de dois tipos: a) elementos constitucionais essenciais e b) questões de justiça básica; e, iii) a sua natureza e conteúdo são públicos sendo expressos no raciocínio público por um conjunto de concepções razoáveis de justiça política que se pense que possa satisfazer o critério de reciprocidade. [87]

A aplicação da idéia de razão pública, neste contexto, é somente àquelas questões de fórum político público, o qual pode ser, no entender do autor, dividido em três partes [88]: i) o discurso dos juízes nas suas discussões – e especialmente dos juízes de um supremo tribunal; ii) o discurso dos funcionários do governo – especialmente executivos e legisladores principais; iii) o discurso de candidatos a cargo público, na plataforma de campanha e declarações políticas [89].

Diferente desse fórum tripartite é a cultura de fundo da sociedade civil. Rawls compreende que a cultura de fundo não é guiada por nenhuma idéia ou princípio central, político ou religioso. A idéia de razão pública, segundo o filósofo, não é aplicada a essa cultura de fundo [90].

Voltando à discussão acerca da idéia de razão pública, Rawls a entende como sendo originada de uma concepção de cidadania democrática numa democracia constitucional. Essa relação política fundamental da cidadania com a democracia tem duas características: i) a primeira delas é que ela é uma relação de cidadãos com a estrutura básica da sociedade – na qual se entra pelo nascimento e somente se sai pela morte; ii) e a segunda, dada pela relação de cidadãos livres e iguais, que exercem o poder político último como corpo coletivo [91].

Neste sentido, para Rawls, essas duas características originam imediatamente a questão de como e quando os elementos constitucionais essenciais e as questões de justiça básica estão em jogo, os cidadãos assim relacionados podem ser obrigados a honrar a estrutura do seu regime democrático constitucional e aquiescer aos estatutos e leis decretados sob ele – ou noutras palavras, por quais ideais políticos os cidadãos que compartilham igualmente o poder político último devem exercer esse poder para que cada um possa justificar razoavelmente as suas decisões políticas para todos. A resposta formulada por Rawls a essa questão é que os cidadãos são razoáveis quando vêem-se mutuamente como livres e iguais em um sistema de cooperação social ao longo de gerações, e assim, estão preparados para oferecer um ao outro termos justos de cooperação segundo o que consideram ser a concepção mais razoável de justiça política, e quando concordam em agir com base nestes termos, mesmo ao custo dos seus interesses em situações particulares, contanto que os outros cidadãos aceitem esses termos. [92]

Numa questão constitucional essencial, ou numa questão de justiça básica, todos os funcionários governamentais atuam a partir da razão pública e a seguem, e quando todos os cidadãos razoáveis pensam em si mesmos idealmente, isto é, como se fossem legisladores seguindo a razão pública, a disposição jurídica que expressa a opinião da maioria é lei legítima, e desta maneira, politicamente (e inclusive, moralmente para Rawls) obrigatória para cada cidadão [93]. Acerca desta disposição, Rawls entende que a cada cidadão:

"pode não parecer [...] como a mais razoável ou a mais adequada, mas é politicamente (moralmente) obrigatória para cada cidadão e deve ser aceita como tal. Cada um pensa que todos falaram e votaram pelo menos razoavelmente e, portanto, que todos seguiram a razão pública e honraram o seu dever de civilidade [94]."

Rawls entende, portanto, que a idéia de legitimidade política baseada no critério de reciprocidade estabelece que o exercício do poder político de cada cidadão é adequado apenas quando estes acreditam sinceramente que as razões que ofereceriam para suas ações políticas são suficientes. Além disso, os cidadãos devem pensar razoavelmente que outros cidadãos também poderiam aceitar razoavelmente essas questões. Para Rawls, esse critério se aplica em dois níveis, a saber: i) à própria estrutura constitucional; e, ii) aos estatutos e leis particulares decretados em conformidade com essa estrutura [95].

Nesta medida, o papel do critério de reciprocidade na razão pública é especificar a natureza da relação política num regime democrático constitucional como uma relação de amizade cívica posto que, quando funcionários do governo atuam a partir dele e outros cidadãos o apóiam, ele dá forma às suas instituições fundamentais [96].

Como é evidente, a argumentação rawlsiana é interessada pela democracia. Segundo o autor, seu interesse é afixado, dentre as muitas democracias teorizadas, pela democracia constitucional bem ordenada compreendida como uma democracia deliberativa, sendo a própria idéia de deliberação a idéia definitiva a favor desta democracia. Nessa democracia deliberativa, Rawls argumenta que há três elementos essenciais: i) a idéia de razão pública; ii) uma estrutura de instituições democráticas constitucionais que especifique o cenário dos corpos legislativos deliberativos; e, iii) o conhecimento e o desejo dos cidadãos em geral de seguirem a razão pública e concretizarem o seu ideal na conduta política. Além disso, Rawls entende que a democracia deliberativa também reconhece que, sem instrução ampla sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e sem público informado a respeito de problemas prementes, decisões políticas e sociais cruciais simplesmente não podem ser tomadas [97]. Assim, é patente que a estrutura governamental de uma democracia constitucional deve manter peremptoriamente os cidadãos informados a respeito dos problemas mais evidentes desta sociedade.

A idéia de lei legítima, segundo Rawls, para uma sociedade democrática, é o resultado da aplicação do conteúdo da idéia de razão pública, formado por um conjunto de concepções políticas razoáveis de justiça, em discussões de normas coercitivas. Conforme apontado acima, a lei legítima é a expressão, por um lado, da atuação de todos os funcionários e juízes governamentais, e, por outro, da ação dos cidadãos razoáveis, que se pensam como legisladores ideais seguindo a idéia de razão pública. Além disso, a lei legítima é compreendida por todos os cidadãos como sendo aplicada à estrutura geral da autoridade política [98]

Rawls esclarece ainda, com relação ao voto do cidadão, no processo de formação de uma lei legítima, os quais devem votar de acordo com o seu ordenamento completo de valores políticos, que:

"A concepção política razoável de justiça nem sempre leva à mesma conclusão; tampouco cidadãos que sustentam a mesma concepção concordam sempre quanto a questões específicas. Não obstante, o resultado da votação [...] deve ser visto como legítimo, contanto que todos os funcionários governamentais, apoiados por outros cidadãos razoáveis, de um regime constitucional razoavelmente justo, votem de acordo com a idéia de razão pública. Isso não significa que o resultado seja verdadeiro ou correto, mas que o resultado é uma lei razoável e legítima, obrigatória para os cidadãos pelo princípio da maioria". [99]

No que diz respeito a esses cidadãos, para os quais, de acordo com os seus valores políticos razoáveis, a lei resultada não seja correta, Rawls diz que eles mesmos não precisam exercer o direito assegurado por essa lei. Assim, segundo o autor, podem tais cidadãos:

"[...] reconhecer o direito como pertencente à lei legítima decretada em conformidade com instituições políticas legítimas e com a razão pública e, portanto, não lhe resistir com a força". [100]

Outrossim, a idéia que Rawls procura clarificar nesta argumentação não é a de que uma lei legítima seja necessariamente uma lei justa. Em,Uma Teoria da Justiça, Rawls esclarece que a constituição é um procedimento justo, todavia, imperfeito. Ora, é imperfeito porque não existe nenhum processo político factível que garanta que as leis estabelecidas segundo parâmetros legítimos serão justas [101]. Apesar disso, o cidadão tem o dever natural de apoiar instituições justas, em função do qual é obrigado a acatar leis e políticas injustas, ou, pelo menos, a não lhes fazer oposição usando meios ilegais, desde que elas não ultrapassem certos limites de injustiça [102].

Entretanto, para o filósofo, num regime democrático o interesse legítimo do governo é que a lei e a política públicas sustentem e regulamentem, de maneira ordenada, as instituições necessárias para reproduzir a sociedade política ao longo do tempo [103], de modo a promover a justiça.


3. OBEDIÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA À LEI


3.1 A Obediência à Lei

No que concerne à obediência à lei, na obra de Rawls, tem-se dois referenciais: por um lado, no âmbito internacional, em, O Direito dos Povos, o estudo das diferentes sociedades admitidas pelo autor, e por outro, em, Uma Teoria da Justiça, o estudo do que é uma lei injusta e da desobediência civil.


3.1.1 Povos Liberais (Regime Doméstico)

Rawls considera como povos liberais aquelas sociedades, razoavelmente justas, cujo regime é o democrático constitucional [104]. Estes povos, conforme os compreende Rawls, possuem três características elementares: i) eles têm um governo constitucional razoavelmente justo; ii) possuem afinidades comuns [105]; iii) são possuidores de uma natureza moral [106]. A primeira característica, segundo Rawls, é notadamente, institucional; a segunda é cultural; a terceira, exige uma ligação firme com uma concepção político-moral de direito e justiça.

Outra característica dos povos liberais é que são razoáveis e racionais, como os cidadãos em uma sociedade nacional, e sua conduta racional, enquanto organizada e expressa nas leis e políticas do seu governo, é similarmente limitada pela percepção do que é razoável [107].

Na Sociedade dos Povos, Rawls argumenta que há, paralelamente aos princípios da justiça em uma sociedade democrática, um conteúdo baseado na idéia de razão pública [108]. Distinto, porém, dessa idéia de razão pública, é o ideal da razão pública. Rawls entende que, na Sociedade dos Povos esse ideal é realizado ou satisfeito sempre que juízes, legisladores, executivos e outros funcionários do governo, e candidatos a cargos públicos agem a partir da idéia de razão pública e em conformidade com ela, e explicam aos outros cidadãos as razões para sustentar questões políticas fundamentais em função da concepção política de justiça que consideram ser a mais razoável. Rawls aduz que, quando assim agem, estas pessoas cumprem o seu dever de civilidade [109]. Os cidadãos, na sociedade nacional, cumprem seu dever de civilidade, e concomitantemente sustentam a idéia de razão pública ao fazerem o que podem para que os juízes e funcionários governamentais a sustentem. O dever de civilidade, para os cidadãos, na Sociedade dos Povos, conforme o entende Rawls, tem um processo similar, isto é, eles devem fazer o que podem para que os juízes e os funcionários do governo sustentem-na em suas práticas e discursos.


3.1.2 Povos Decentes

O termo decente, usado por Rawls para fazer referência a Povos ou Sociedades Decentes em, O Direito dos Povos, descreve sociedades não-liberais cujas instituições cumprem certas condições especificadas de direito e de justiça política e levam seus cidadãos a honrar um Direito razoavelmente justo no entendimento e parâmetros da Sociedade dos Povos. Esses povos, segundo o autor, possuem na estrutura básica o que ele chama de uma "hierarquia de consulta decente" [110], o que faz com que seus membros participem efetivamente, em termos de decisão, na definição dos rumos da política no seio destas sociedades.

Neste sentido, conforme a argumentação de Rawls, a

"(...) estrutura básica (das sociedades decentes) deve incluir uma família de corpos representativos cujo papel na hierarquia seja participar de um processo de consulta estabelecido e cuidar daquilo que a idéia do bem comum de um povo considera como os interesses importantes de todos os membros do povo" [111].

Neste aspecto, os membros dessas sociedades, na vida pública, são reconhecidamente membros de grupos diferentes. Assim, no entender de Rawls, com vistas à efetivação desse direito que cada cidadão tem de participar nas decisões políticas, cada grupo é representado no sistema jurídico por um corpo numa hierarquia de consulta decente.

Rawls elenca dois critérios a partir dos quais especifica as condições para que uma sociedade hierárquica decente, como ele as chama, seja um membro de boa reputação da Sociedade dos Povos [112]. Este primeiro critério elaborado por Rawls especifica que a sociedade hierárquica decente não tem objetivos agressivos e reconhece que deve alcançar seus fins legítimos mediante a diplomacia, o comércio e outros caminhos pacíficos. Ela respeita a ordem política e social de outras sociedades embora sua doutrina subjacente seja tida como abrangente dentro e com influência sobre a estrutura de governo e da sua política social. Assim, se busca maior influência, ela fará isso de maneira compatível com a independência de outras sociedades [113]. No tocante ao objetivo deste trabalho, o segundo critério tem mais relevância. Este critério tem três partes, assim estabelecidas por Rawls:

"A primeira parte é que o sistema de Direito de um povo hierárquico decente, em conformidade com a sua idéia de justiça do bem comum (...), assegura a todos os membros do povo aquilo que veio a ser chamado direitos humanos. Um sistema social que viola esses direitos não pode especificar um esquema decente de cooperação política e social". [114]

Do exposto, nota-se que, estando em conformidade com a idéia de justiça do bem comum [115] de cada povo, o conjunto daquilo que é chamado direitos humanos [116] ocupa um lugar central no sistema de Direito destas sociedades. É por esta idéia de justiça do bem comum nestas sociedades hierarquicamente decentes que se atribui direitos humanos a todos os membros [117]. O significado dessa idéia de bem comum é mais claro distinguindo-a, num lado, do objetivo comum de um povo [118], e insistindo, do outro lado, em que o sistema jurídico decente deve conter uma hierarquia de consulta decente.

Os direitos humanos, para Rawls, estabelecem um padrão necessário mas não suficiente para a decência das instituições políticas e sociais. Eles limitam o Direito nacional admissível da sociedade com boa reputação em uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa. Além do que, os direitos humanos, como classe especial de direitos, têm, na Sociedade dos Povos, três papéis: i) seu cumprimento é condição necessária da decência de instituições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica; ii) seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e coercitiva de outros povos, por exemplo, por meio de sanções diplomáticas e econômicas; iii) eles estabelecem um limite para o pluralismo entre os povos [119]

Além disso, Rawls os compreende como tendo duas características, quais sejam: a primeira é vê-los como pertencentes a uma concepção de justiça política liberal e como um subconjunto dos direitos e liberdades assegurados a todos os cidadãos livres e iguais num regime democrático liberal constitucional, ao passo que a segunda, é vê-los como pertencentes a uma forma associativa a qual vê as pessoas, primeiro, como membros de grupos e, somente então, como sujeitos de direitos e liberdades que as capacitam a cumprir seus direitos e obrigações e a participar de um sistema decente de cooperação social. Nesse sentido, aquilo que é chamado de direitos humanos veio a ser condição necessária de qualquer sistema de cooperação social [120].

Entre os direitos humanos, Rawls lista prementemente os seguintes, a saber: o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade formal expressa pelas regras de justiça natural – que ordena que casos similares devem ser tratados de maneira similar. [121]

A segunda parte do segundo critério de participação de sociedades hierárquicas decentes na Sociedade dos Povos, é enunciada por Rawls da seguinte forma:

"[O] sistema de Direito de um povo decente deve ser tal que imponha deveres e obrigações morais (distintos dos direitos humanos) bona fidea todas as pessoas dentro do respectivo território. Como os membros do povo são considerados decentes e racionais, assim como capazes de desempenhar um papel na vida social, eles reconhecem que esses deveres e obrigações ajustam-se à sua idéia de justiça do bem comum e não vêem seus deveres e obrigações como meros comandos impostos mediante a força. Têm a capacidade do aprendizado moral e sabem a diferença entre o certo e o errado tal como compreendidos na sua sociedade." [122]

Ora, a questão que está implícita nesta argumentação de Rawls, é que numa sociedade que outorgue aos seus membros o direito de participação nas questões fundamentais da política, por exemplo, através da hierarquia de consulta decente, os deveres e obrigações, que têm implicações morais, isto é, devem ser levados seriamente, são oriundos da justiça do bem comum subjacente à essa sociedade. Os cidadãos dessas sociedades, segundo Rawls, como pessoas decentes e racionais, têm a capacidade do aprendizado moral [123] tal como reconhecida na sua sociedade, mesmo que não sejam consideradas como cidadãos livres e iguais e nem como indivíduos que mereçam representação. Assim, podem reconhecer quando, como membros responsáveis, seus deveres e obrigações morais conformam-se à idéia de justiça do bem comum do povo – visto que cada pessoa pertence a um grupo representado por um corpo na hierarquia de consulta, e cada pessoa participa de atividades distintas e desempenha certo papel no esquema geral de cooperação [124]. Além disso, a concepção de pessoas dessas sociedades, conforme o aduz Rawls, não implica a aceitação de que elas, primeiro, são cidadãs e têm direitos básicos iguais como cidadãos iguais. Tais sociedades, antes, compreendem "as pessoas como membros responsáveis e cooperativos dos seus grupos respectivos". [125]

A terceira parte do segundo critério de participação das sociedades hierárquicas decentes na Sociedade dos Povos, por fim, é exposta da seguinte maneira:

"Finalmente, [...] deve haver uma crença sincera e não irrazoável, da parte dos juízes e outros funcionários que administram o sistema jurídico, de que a lei é realmente guiada por uma idéia de justiça do bem comum. Leis sustentadas pela força somente são motivos à rebelião e à resistência." [126]

Neste sentido, Rawls argumenta que é irrazoável, se não irracional, os juízes e outros funcionários do governo pensarem que a idéia da justiça do bem comum está sendo seguida, se os direitos humanos atribuídos por ela a todos os membros são violados repetidamente. Além disso, a crença sincera e não irrazoável dos juízes e de outros funcionários, para Rawls, deve ser refletida na sua boa-fé e disposição para defender publicamente as injunções da sociedade como justificadas pelo Direito, sendo os próprios tribunais fórum para esta defesa.

Outrossim, é que uma hierarquia de consulta decente, nas decisões políticas, permite que as diferentes vozes sejam ouvidas adequadamente, em vista de valores religiosos e filosóficos da sociedade, como expressos na sua idéia de bem comum. Rawls entende que as pessoas, em algum ponto da consulta, como membros de "instituições", têm o direito de expressar dissidência política, e, o governo, a obrigação de considerar, com seriedade a dissidência de um grupo e oferecer resposta conscienciosa – visto que deve existir, além de uma crença sincera da parte dos juízes e outros oficiais na justiça do sistema jurídico, a admissão por parte destes, da possibilidade de dissidência: eles devem estar disponíveis às objeções, e não podem recusar-se a ouvir, porque daí tal regime seria de um governo paternalista. À esta resposta, os dissidentes têm o direito de não aceitarem, renovando sua dissidência, explicando, por conseguinte, o porquê de tal, o que impõe a necessidade de uma resposta adicional ainda mais completa. Rawls entende que a dissidência expressa uma forma de protesto público e permissível, desde que permaneça dentro da estrutura básica da idéia de justiça do bem comum [127].


3.1.3 Povos Fora-da-Lei (Outlaw States)

A terceira sociedade admitida em, O Direito dos Povos, é aquela denominada Estado Fora-da-Lei, ou, na expressão rawlsiana original, Outlaw States. Estas sociedades compreendem aquelas que se recusam a aquiescer a um Direito dos Povos razoável [128].

Como anteriormente referido, o arrolamento dos direito humanos, para o filósofo americano, é intrínseco ao Direito dos Povos e têm um efeito, em sentido moral, sendo ou não sustentados localmente. Rawls compreende que a sua força política estende-se a todas as sociedades e eles são obrigatórios para todos os povos e sociedades, inclusive, para os Estados Fora-da-Lei. Um Estado Fora-da-Lei que viola esses direitos deve ser condenado a ponto de, em casos graves, ser sujeitado a sanções coercitivas e mesmo à intervenção [129].

Os direitos humanos são como um subconjunto adequado de direitos possuídos pelos cidadãos em um regime democrático constitucional liberal ou dos direitos dos membros de uma sociedade hierárquica decente – e esses povos, no Direito dos Povos, tal como os povos liberais e decentes, não toleram os Estados Fora-da-Lei. A recusa da parte destas sociedades em tolerar tais Estados é conseqüência do liberalismo e da decência visto que tais Estados são agressivos e perigosos, isto é, neles há a violação dos direitos humanos em sua estrutura básica [130].


3.1.4 Sociedades Oneradas

As Sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, ou sociedades oneradas, são aquelas submetidas a condições históricas, sociais e econômicas as quais tornam difícil, se não impossível, alcançar um regime bem-ordenado, liberal ou decente [131]. Estas sociedades estiveram, durante tempo significativo, expostas a condições desfavoráveis, o que torna difícil um regime aceitável na Sociedade dos Povos. Rawls propõe-se inquirir até que ponto as sociedades bem-ordenadas, isto é, as sociedades liberais e decentes devem tolerar e, inclusive, ajudar tais sociedades.

Embora estas sociedades não sejam expansionistas e nem agressivas, no entender de Rawls, elas carecem de tradições políticas e culturais, de capital humano e conhecimento técnico e, muitas vezes, dos recursos materiais e tecnológicos necessários para que sejam bem ordenadas. Segundo o filósofo, os povos bem-ordenados têm um dever de assistir às sociedades oneradas [132], e essa assistência não é em sentido econômico. Embora o aspecto econômico seja relevante, uma sociedade com poucos recursos naturais e pouca riqueza pode ser bem ordenada se as suas tradições políticas, sua lei e sua estrutura de propriedade e classe, juntamente com as crenças morais e religiosas e a cultura subjacentes, são tais que sustentem uma sociedade liberal ou decente [133].

Tendo em vista o dever de assistência dos povos bem-ordenados para com as sociedades oneradas, Rawls elabora três diretrizes para este dever. De acordo com a primeira diretriz, uma sociedade, para ser bem ordenada, não precisa ser rica. Com o intuito de corroborar esta assertiva, Rawls evoca três princípios elementares do princípio de "poupança justa". Primeiro, o propósito do princípio de poupança justa é estabelecer instituições básicas justas para uma sociedade democrática constitucional livre (ou qualquer sociedade bem-ordenada) e assegurar um mundo social que torne possível uma sociedade digna para todos os seus cidadãos; segundo, a poupança pode parar assim que as instituições básicas justas tenham sido estabelecidas; e terceiro, a grande riqueza não é necessária para estabelecer instituições justas. Diferentemente de elevar o nível de riqueza, o objetivo deste dever de assistência é concretizar e preservar instituições justas ou decentes[134].

A segunda diretriz é voltada à cultura política das sociedades oneradas. A cultura política destas sociedades, afirma Rawls, é de suma importância. Todavia, enfatiza o autor, não existe nenhuma receita para que os povos bem-ordenados ajudem uma sociedade onerada a mudar sua cultura política. Uma possibilidade levantada pelo autor é a de que dar ênfase sobre os direitos humanos pode ajudar regimes ineficazes e a conduta dos governantes que foram insensíveis ao bem-estar de seu próprio povo pode ajudar tais sociedades a sair de tal situação, porquanto estes direito elementares pertencem às instituições e práticas comuns de todas as sociedades liberais e decentes [135].

Por fim, a terceira diretriz para executar o dever de assistência é que seu objetivo seja mudar as sociedades oneradas, para que sejam capazes de gerir os seus próprios negócios de um modo razoável e racional, e por fim, tornarem-se membros da sociedade dos povos bem-ordenados [136]


3.1.5 Absolutismo Benevolente

As sociedades sob a insígnia de absolutismos benevolentes são, para Rawls, aquelas que honram os direitos humanos, mas em função de negarem a seus membros um significativo papel nas decisões políticas, não são consideradas bem-ordenadas [137].

Apesar de não serem sociedades bem-ordenadas, Rawls estatui que elas têm o direito à autodefesa. Um absolutismo benevolente não é uma sociedade bem-ordenada por não oferecer aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas – embora respeite e honre os direitos humanos. Em, O Direito dos Povos, para Rawls, qualquer sociedade que não seja agressiva e honre os direitos humanos tem o direito de autodefesa[138].


3.2 A Obediência à uma Lei Injusta e a Desobediência Civil

Na teoria rawlsiana, uma lei injusta é aquela que não está de acordo com as enunciações e implicações provenientes dos princípios da justiça, os quais estão na base do estabelecimento de todos os deveres e obrigações. Mas, para o filósofo, o fato de uma lei ser injusta não é motivo e razão suficiente e justo para deixar de obedecê-la.


3.2.1 A Injustiça de uma Lei

A discussão sobre a obediência, ou não, a uma lei injusta, na teoria rawlsiana, é situada, principalmente, no § 53, da obra, Uma Teoria da Justiça. Nesta passagem, Rawls afirma que a questão relevante consiste em saber em quais circunstâncias e em que medida somos obrigados a obedecer ordenações injustas. A elaboração teórica de tal indagação parte da pressuposição de que é claro que o nosso dever e obrigação de aceitar ordenações concretas pode ser sobrepujado, em certas ocasiões, por exigências que dependem do conceito de justo e que, consideradas todas as circunstâncias, podem justificar a não obediência, em certos momentos, a uma lei injusta.

A injustiça de uma lei e, igualmente, de uma política, para Rawls, pode surgir de dois modos: num, as leis, em grau diverso, podem afastar-se dos padrões de justiça publicamente aceitos; noutro, essas leis podem conformar-se com a definição de justiça de uma sociedade ou de uma classe dominante, que pode não ser razoável em si mesma, em virtude de algumas concepções serem mais ou menos razoáveis que outras [139]. Entretanto, para Rawls, a construção dessa teoria funcional baseada nestes dois modos pelos quais uma lei torna-se injusta é complexa, no sentido de que, inicialmente, quando as leis afastam-se dos padrões publicamente reconhecidos é pensável que se recorra ao senso de justiça da sociedade – para o caso da desobediência – e, num outro caso, se deve discutir por que temos o dever de obedecer a leis injustas.

Para Rawls, o dever de justiça e o princípio da eqüidade pressupõem que as instituições sejam justas. Mas isso não é suficiente. É preciso, para a elaboração de uma teoria que se esclareça o porquê de se obedecer uma lei que seja injusta. Assim, Rawls postula que possa existir uma sociedade na qual o sistema social seja bem ordenado, sem apresentar uma ordenação perfeita, isto é, uma sociedade quase justa na qual exista um regime constitucional viável que satisfaça o princípio da justiça.

Rawls entende, também, que a constituição é vista como um procedimento justo, porém imperfeito visto que não há como garantir, mediante procedimentos políticos factíveis, que as leis hão de ser justas. Nas atividades políticas, prossegue o filósofo, é impossível atingir uma justiça procedimental perfeita. No pensamento de Rawls, numa sociedade cujo regime político interno seja de quase justiça, os cidadãos têm o dever de acatar ordenações e políticas injustas em virtude do dever natural de apoiar instituições justas.

Além disso, há o problema da instabilidade, latente nesta discussão levada a efeito por Rawls em torno do dever de obediência, tendo em vista que o dever natural mais elementar e fundamental, a partir da teoria da justiça, é o de apoiar e promover as instituições justas. Isto é, há o risco, no caso da não obediência a certas ordenações injustas, de se incorrer na geração da instabilidade das instituições. Para promover a estabilidade das instituições, é preciso, em certos casos, obedecer certas ordenações injustas. A estabilidade das instituições justas, no contexto de, Uma Teoria da Justiça, é simplesmente fruto do estímulo da aceitação da exigência de apoio e acatamento destas instituições. Tal estabilidade é ameaçada, fundamentalmente, por duas posturas, quais sejam: a postura egoísta, e a desconfiança da lealdade alheia.

Deste modo, tendo em vista que o objetivo dos cidadãos é barganhar benefícios para si – isto é, cada cidadão vivendo em sociedade, compreendendo-a como um sistema de cooperação social, procura por meio desta, através da cooperação social entre pessoas livres e iguais haurir benefícios para si – cada cidadão tem o dever de acatar e obedecer instituições, políticas e leis injustas em vista da manutenção desta sociedade.


3.2.2 Definição da Desobediência Civil

Rawls alerta que uma teoria acerca da desobediência civil [140] deve, antes de tudo, definir o âmbito dentro do qual situa-se e que identificar, igualmente, as considerações que são, de fato, pertinentes.

Para o filósofo, a desobediência é iniciada com um público cujos constitutivos principais são a não-violência e a consciência no sentido de que propõe uma mudança na lei. O ato de protesto configurante da desobediência civil não viola necessariamente a mesma lei contra a qual se protesta. Há, para Rawls, uma distinção entre a desobediência civil direta e indireta. Além disso, Rawls entende literalmente que a desobediência civil é um ato contrário à lei, e que os envolvidos, mesmo considerando que uma lei protestada seja mantida, estão preparados para opor-se a ela. [141]

A desobediência civil, observa Rawls, é um ato político [142]. Assim o é porque orienta-se e justifica-se por princípios embasadamente políticos, isto é, aqueles princípios reguladores da constituição e das instituições sociais. Nota-se que o autor compreende, no Uma Teoria da Justiça, que a concepção de justiça, comumente partilhada, subjaz à ordem política. Há presunção, por parte do autor, de que haja uma concepção pública de justiça. Ora, é a partir desta concepção que, numa sociedade razoavelmente democrática, os indivíduos regulam suas atividades políticas e interpretam sua constituição, de modo que a violação contínua e deliberada dos princípios básicos dessa concepção por um longo tempo incita, ou à submissão, ou à resistência.

A desobediência civil é um ato público [143], no sentido estrito do termo, ou seja, ela é feita em público, sendo comparada, pelo filósofo, ao ato de falar em público. Por conta disso, é caracterizada como uma ação que não violenta, sendo esta incompatível com a noção de apelo público latente em si. Há, para Rawls, uma outra razão pela qual a desobediência civil é considerada uma ação não violenta [144]: ela expressa uma desobediência à lei dentro dos limites da fidelidade à lei (essa fidelidade é expressa pela natureza pública e não violenta do ato), embora seja situada na margem externa da legalidade. Ou seja, é a fidelidade à lei que move a desobediência.

Portanto, resulta que a desobediência civil, numa sociedade bem-ordenada, é definida por Rawls como uma forma de protesto nos limites da fidelidade à lei, sendo, nesta perspectiva, distinta, por um lado, da objeção de consciência, e por outro, da própria ação armada.


3.2.3 Justificação da Desobediência Civil

Em sua argumentação acerca da justificação da desobediência civil, na qual Rawls não menciona o princípio da eqüidade, mas somente o dever natural de justiça, base primeira dos vínculos políticos com um regime constitucional, Rawls esclarece que esta reserva-se aos limites internos de um estado democrático, isto é, é restrita às injustiças internas – entendendo aqui que estas são promovidas por suas instituições –, de uma sociedade bem-ordenada.

Para o autor, há três pressupostos, que são condições a partir das quais elabora-se uma justificação da desobediência civil. A primeira condição pressuposta concerne à injustiça, a qual constitui o objeto da desobediência civil. Rawls considera, como acima apontado, que a desobediência civil é um ato político, dirigido ao senso de justiça razoável da comunidade. Ela deve ser restringida a casos de injustiça evidente, sobretudo, à violação do princípio da liberdade igual, uma vez que este define o status comum da cidadania igual dentro de um regime constitucional. Dessa maneira, Rawls exclui da desobediência civil as violações ao princípio da diferença, posto que suas infrações são mais difíceis de serem verificadas em razão de o princípio ser aplicado a práticas e instituições sociais e econômicas. A despeito disso, argumenta o filósofo, é melhor deixar a resolução dessas questões ao processo político – desde que as liberdades iguais necessárias estejam preservadas.

A segunda condição imposta por Rawls diz respeito à suposição de que os apelos normais dirigidos à maioria política já foram feitos de boa-fé e não obtiveram êxito, mostrando-se os meios legais evidentemente inúteis. Nos casos em que a desobediência civil é o último recurso, pondera Rawls, deve-se ter certeza de que ela é factualmente necessária. De fato, na perspectiva rawlsiana, só se encontra a segunda condição se houver comprovadamente necessidade da desobediência civil. Caso não haja, não se a tem.

A última condição se configura, para Rawls, no sentido de que em certas ocasiões o dever natural de justiça [145] pode exigir uma determinada restrição, qual seja, o problema das minorias. Entende o filósofo que tal problema se coloca quando minorias, durante certo tempo, sofrem graus de injustiça e, por esta razão, alicerçadas nas condições referidas anteriormente, têm razão para a prática da desobediência civil. Rawls reconhece que pode haver uma situação na qual diversas minorias tenham, comprovada e evidentemente, razão para a prática da desobediência civil. Isso pode gerar, no seio desta sociedade quase justa, uma grave desordem, e esta poderia minar a eficácia da constituição justa. Assim, a solução ideal, no entender de Rawls é um acordo de cooperação política entre as minorias, o qual objetiva regular o nível total, nesta sociedade, de desarmonia, sob pena de, se assim não for feito, gerar-se um dano permanente na constituição conforme à qual tais cidadãos têm um dever natural de justiça.

O autor considera ainda, à luz dessas três condições, se é sensato e prudente exercer o direito à desobediência civil tendo em vista que, num estado de quase justiça, é improvável que se reprima a dissensão legítima de modo vindicativo, mas é importante que a ação seja concebida de forma adequada para exercer um apelo efetivo sobre a comunidade mais ampla.


3.2.4 Papel da Desobediência Civil

Por fim, Rawls esclarece o papel da desobediência civil no âmbito de um sistema constitucional e mostra sua ligação com o governo democrático, supondo que a sociedade em questão é, como vinha fazendo, quase justa e que os princípios da justiça são, em sua maior parte, reconhecidos como termos básicos da cooperação voluntária entre pessoas livres e iguais.

O que Rawls pretende é deixar claro que, pela prática da desobediência civil, um cidadão apela ao senso de justiça da maioria com o intuito de tornar público, no tocante à pessoa, que as condições de cooperação livre estão sendo violadas. Disso, tem-se que, numa sociedade bem-ordenada, na qual as instituições são injustas, apesar de imperfeitas, os cidadãos quando são lesados comprovadamente, a partir das condições anteriormente especificadas, não precisam obedecer às leis que lhes ferem porque, segundo Rawls, a desobediência civil é um recurso estabilizador de um sistema constitucional, embora, como afirma o próprio Rawls, seja por definição ilegal. A desobediência civil, com a devida moderação e o critério justo, auxilia a manter e a reforçar as instituições justas visto que, restituindo à injustiça dentro dos limites da fidelidade à lei, ela serve para prevenir desvios da rota da justiça e para corrigi-los quando acontecem.

Rawls alerta que o recurso à desobediência civil, mesmo repousando unicamente sobre uma concepção de justiça que caracteriza a sociedade democrática, sendo, assim, parte da teoria do governo livre, acarreta riscos evidentes. Assim, argumenta Rawls, uma das razões de ser das formas constitucionais e de suas interpretações judiciais é a de estabelecer uma interpretação pública da concepção política da justiça e uma explicação da aplicação de seus princípios para as questões sociais.

O filósofo é convicto de que, tendo em mente os possíveis desvios que uma lei possa ter da concepção pública do justo compartilhada pelos cidadãos numa sociedade bem-ordenada, é mais relevante que a lei e suas interpretações sejam estabelecidas do que o fato de serem estabelecidas corretamente. Cada cidadão, a partir da perspectiva rawlsiana, é considerado autônomo e responsável por aquilo que faz, isto é, numa sociedade democrática se sabe reconhecer que cada cidadão é responsável por sua interpretação dos princípios da justiça e pela conduta que assume à luz deles. Entretanto, tal fato não significa que a decisão da prática da desobediência civil seja como lhe aprouver. O filósofo entende que, para agir de modo autônomo e responsável, o cidadão deve observar os princípios que embasam e orientam a interpretação da constituição, vendo como esses princípios deveriam ser aplicados concretamente. Caso comprove a necessidade e a justificação da desobediência civil, isto é, quando as circunstâncias assim colocarem-se, sua prática será consciente e, portanto, de acordo com a teoria da desobediência civil.


CONCLUSÃO

Está pesquisa procurou tornar clara a relação existente entre o sujeito, na perspectiva rawlsiana, e a relação desta com a noção jurídica de norma, a partir da sua concepção de justiça, a justiça como eqüidade. Para tanto, procurou-se caracterizar o processo através do qual o sujeito constitui-se e aprende a justiça numa sociedade bem-ordenada. Seguidamente, analisou-se o conceito de lei na obra do renomado autor, desde o âmbito doméstico, isto é, interno a uma democracia constitucional até outras formas societárias admitidas por Rawls, expressas em, O Direito dos Povos. Esta atividade é findada como um estudo, de caráter introdutório da possibilidade da desobediência civil numa sociedade bem-ordenada.

A teoria da justiça, de Rawls, como se procurou elucidar, se mostra como uma tentativa de superar, no âmbito filosófico, principalmente, a teoria utilitarista – amplamente predominante nos países e culturas falantes da língua inglesa. Rawls, a partir dos seus princípios da justiça – conteúdo da justiça política –, construídos a partir de uma posição originária, formaliza uma teoria, cuja base é kantiana, estendida a uma sociedade liberal, na qual as pessoas possuem uma personalidade moral. A personalidade, para o autor, é formada fundamentalmente pela concepção de bem e pelo senso de justiça.

Além disso, convém enfatizar, essas pessoas são razoáveis e racionais. Dessa maneira, elas têm em conta alguns objetivos comuns.

A temática das leis, neste âmbito, é particularmente interessante, haja vista que Rawls não se põe a explanar detidamente a este respeito. Apesar disso, o autor não a negligencia e, apesar de serem breves as considerações, são bastante relevantes e interessantes. Como apontado pelo filósofo, as leis são diretrizes direcionadas às pessoas racionais cujo objetivo é viver num sistema de cooperação social, do qual a base, como sistema social, é transmitida à geração posterior. Neste sentido, essas pessoas procuram, mediante seus atos, agir de forma tal que a justiça seja aprendida por todas as pessoas mediantes as práticas institucionais. Neste intuito e contexto é compreendida a seguinte dizer de Rawls: "a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento". [146] O autor continua sua argumentação esclarecendo que:

"Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficazes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas." [147]

Dessa forma, para o sujeito, em última análise, a lei deve ser expressão institucional da justiça para o benefício do sistema de cooperação social no qual está inserido, isto é, uma sociedade bem-ordenada. Caso não corresponda com essa finalidade, prejudicando deliberadamente membros ou grupos desta sociedade, Rawls, legalmente, isto é, dentro dos limites da lei, admite a desobediência civil como forma de protesto em benefício da sociedade e como forma de promover a justiça mediante a correção desta norma. Cabe enfatizar que a desobediência civil, como fora apontado já, é um recurso de protesto público dentro dos limites da lei em vista de reformulação ou abandono total desta norma jurídica em razão de sua injustiça.


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